terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Mentiras


  Um dia escapo, quando ninguém estiver olhando, eu fujo. Ninguém me dá atenção mesmo, mas ninguém também me deixa sair, se não faço diferença, por que me mantêm aqui? Acho que é pelo prazer de me ver presa, então eu não sou assim tão inútil, minha prisão dá a eles alguma alegria. Mas eu, pensando em fugir, fugir pra onde? O que existe lá fora? 
      Vejo o céu, o pátio, contudo, é tudo que tenho para caminhar, dos lados só os muros, afinal de contas esse é o mundo, altas paredes e um pedaço de céu. Não sei onde fica a porta, nunca vi nenhum dos cinco sair, mas as refeições são servidas pontualmente todos os dias, nos mesmos horários. 
      A faxineira é quem mais vejo, em todo o tempo está varrendo e desinfetando, aliás, o cheiro do mundo vem dentro dos recipientes de líquido azul que a faxineira uso na faxina. Mas ela deve trazer os desinfetantes de algum lugar, alguém deve produzi-los, como fazem a comida. Então, existe mais gente lá fora, que nada, eles fabricam tudo aqui dentro. Mas será que eles dormem? Não sei onde ficam os quartos deles, aparecem para me servir e somem.
      Eu tenho minha cela, fica lá no fim do corredor, no andar em cima do refeitório, da biblioteca e da sala do médico. Não entendo uma coisa, porque há tantas celas vazias se só eu moro aqui? Também existem tantos lugares no refeitório, eu escolho um diferente em cada refeição. Eles são sempre muito atenciosos comigo, mesmo que a maioria de suas respostas seja não. Lembro-me de quando era criança, havia muitos brinquedos no pátio, eu nem sabia que aqui era uma prisão, depois eles sumiram, mas apareceram no quarto aqueles objetos estranhos, isso foi logo depois que fiquei menstruada. Me disseram como eu devia usar tais objetos, mas eu não gosto, são frios demais. 
      Gosto de andar descalça, o concreto liso me dá uns arrepios gostosos, uma vez vi um homem consertando um encanamento, existe um material solto e composto de minúsculas partes, como farinha, debaixo do concreto, ficam no meio dos dedos, tive que lavar as mãos e os pés depois, mas era uma sensação diferente. Enquanto arrumava o concreto que havia sido quebrado, o homem sorriu pra mim, de um jeito que eu nunca tinha visto, havia bondade nele, não era como a cozinheira e o médico, pena que nunca mais o vi. Havia o professor, que esteve comigo até o ano passado, ele me ensinou a ler as Mentiras que estão lá na biblioteca, eu não entendo, se são mentiras, por que me deixam ler? 
      São maravilhosas as Mentiras, e eu gosto daquelas que não têm imagens, só textos, quando eu as termino de ler, eles me deixam ficar com elas, eu as coloco numa estante em minha cela. Tinha outras Mentiras na estante, aquelas que li quando era criança, essas tinham mais imagens, mas eles levaram embora quando eu menstruei. Então comecei uma nova coleção de mentiras, estórias de gente diferenciada das reais e das Mentiras infantis, que habitam lugares misteriosos, em outros tempos, não sei se no passado ou no futuro, com emoções fortes, descontroladas, obsessivos, passionais. 
      Em minhas visões noturnas eu vejo as Mentiras, toco nelas, sinto o cheiro delas, não cheiram a desinfetante, eu sonho com aquelas pessoas, tudo parece tão vivo, deliro, sinto um prazer profundo, acordo desconfortável. Sinto-me culpada depois, não sei porquê, como quando pedi para ver fora dos muros e o médico me disse que isso era errado. 
      As Mentiras são só mentiras, a realidade é outra, contudo, há algo na realidade que existe nas Mentiras, então, não podem ser mentira, é o céu, o céu não é um fim, mas uma porta. Eu adoro o céu, o concreto dos muros, paredes e chão, e o branco das roupas, da louça, dos talheres e dos móveis, me deixam tão entendiada. O céu, todavia, é maravilhoso, quantas cores, tons que eu nem sei o nome. O azul claro do dia transforma-se num negro ponteado de pontos luminosos, que piscam pra mim, o círculo da noite chama-se Lua, como os escritores das Mentiras gostam dela. 
      Nas Mentiras as pessoas se aproximam umas das outras, se abraçam, dançam, juntam os lábios em algo que chamam de beijo, ficam nuas perto das outras, e não sentem vergonha nem medo por isso. A Lua é testemunha desses encontros, os romances, eu queria viver um romance, como os das Mentiras. 
      O Sol, este é o que mais me encanta, ele cria cores espetaculares no céu, ele muda minha vida, gosto dele o dia inteiro. Logo de manhã, ele é suave, tange minha pele com carinho, tenho vontade de rir alto, me dá esperanças, eu o vejo nascendo à esquerda do meu mundo, dá pra ver da janela da minha cela. Logo que o Sol nasce eles abrem a porta da cela e eu saio correndo pelo corredor, a escada fica no extremo direito, então desço e vou ao pátio. 
      O Sol passeia pelo céu só pra mim, e quando ele cai, cria nuanças de tons multicoloridos, através das nuvens, violeta, vermelho, laranja, até morrer abaixo dos muros, eu queria que ele me levasse junto. Então, a Lua e as estrelas reaparecem, pena que não posso ficar no pátio muito tempo depois, eles dizem que é proibido. Então eu entro em minha cela e leio as Mentiras até adormecer. 
      Um dia ainda durmo e acordo no mundo das Mentiras, lá há sofrimento, injustiça, muita dor, mas lá a solidão é acompanhada e as pessoas se aventuram sempre, mesmo que seja para irem só alguns quilômetros distantes de suas moradas, mesmo que seja para ir a um daqueles bares sujos e escuros de uma noite e se entupirem daquelas bebidas que entorpecem as mentes. Lá as pessoas se machucam, mas experimentam, vivem, lá elas perdem, mas tornam a construir, lá não tem só o cheiro de desinfetante azul, mas existem jardins infinitos com árvores, flores e grama, acho que é parecido com os vegetais que me servem nas refeições. 
      Lá podemos ver atrás dos muros, navegar pelos mares e voar pelos ares, atravessando mundos. Nos mundos das Mentiras, a verdade não é uma prisão, mas é tudo o que a imaginação pode criar, lá não existem muros.”

  Enquanto a menina dormia em sua cela, um pedaço de sonho se soltou de sua alma e formou-se então um lindo passarinho. Ele tinha em suas penas todas as cores que haviam no coração da jovem e seu canto era puro como o som da harpa de um serafim. Ele pousou na ombreira da janela e olhou a para a menina, ficou assim por alguns instantes.
      Então, bateu assas e voou, passou pela janela, espírito que era atravessou a matéria, saiu do alojamento e subiu, muito além dos muros da prisão. Lá em cima, no limiar da abóboda terrestre, quase que tocando o espaço sideral, ele parou e se deixou cair. Nesse momento, sem bater as assas, apenas planando, ele viu, milhares de outras prisões, num número que não se podia contar, iam por todas as direções, por toda a Terra. Em cada prisão havia muitas celas, mas somente uma cela era ocupada em cada prisão, por apenas uma menina.
      O concreto e o branco eram comuns em todos os mundos, de todas as meninas, somente uma coisa era diferente, a coleção de Mentiras. Cada menina tinha a coleção que preferia, assim cada uma podia sonhar sonhos diferentes, nos quais as mentiras eram verdade. Os sonhos subiam, deixavam o planeta das meninas, e no espaço se transformavam em outros planetas, mundos reais, com todas as peculiaridades que haviam nas Mentiras, lugares onde havia liberdade e aventura.
      Nesses mundos as Mentiras são chamadas de livros.

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