sábado, 30 de janeiro de 2016

O guarda-roupa do meu pai

"As Crônicas de Nárnia" (Andrew Adamson/2005)
      Camada por camada, fui me despindo, arranquei minha face esculpida a nãos e cale-se, cortei meus pés, não foram feitos para caminhar neste mundo, extirpei meus olhos, minha atenção nunca esteve em coisas que precisam de globos oculares para serem vistas, deixei meus ouvidos maníaco-depressivos e minhas mãos, íntimas do ébano e do marfim. De fato não tirei nada, apenas acalmei as águas, que turvas não deixavam ver o fundo, assim a lama, antes precipitada pelo ódio e pelas mágoas, descansaram nas profundezas, elas ainda estão lá, não deixaram de existir, mas agora quietas, uniformemente deitadas sobre os declives da minha alma, não deformam aquilo que sou, apenas dão alguma cor à minha verdade.

      - Meu filho, vai sair assim?
      - Vou mamãe, o que é que tem?
      - Assim você vai passar vergonha, vista alguma coisa.
      - Para que? Eu nasci assim...
      - Veja lá no quarto do seu pai, no guarda-roupa, deve ter alguma coisa que sirva pra você - o menino se dirigiu para uma parte da casa na qual nunca havia entrado.
      - Mãe, a porta está fechada.
      - A chave está dentro do vaso, na mesinha do corredor.
     Ele teve medo, achou que algum bicho iria mordê-lo, em sua mente viu aranhas e escorpiões, mas tomou fôlego e colocou a mão dentro do vaso. Um frio medonho esfriou seus dedos que começando por mãos e braços tomou conta de todo o seu corpo, era uma sensação estranha, a mesma que ele teve quando foi ao enterro de sua avó, ele até sentiu o cheio de parafina queimada no ar, ar que pesava, pressionando seu peito, roubando-lhe oxigênio, impressionando nele uma memória que carregaria pelo resto da vida.
     O menino colocou a chave na fechadura, duas voltas e a porta se abriu, procurou o interruptor na parede da esquerda, achou-o e acendeu a luz, uma luz fraca e amarela, que parecia ter tornado o ambiente ainda mais escuro. Havia uma cômoda à esquerda, ao lado do interruptor, uma cama de casal no meio do quarto, rente à parede paralela da esquerda. À direita havia um espaço por onde ele andou até o guarda-roupa, na parede da frente, no fundo do quarto. Os móveis eram enormes, com detalhes redondos nas laterais, cantos e parte superior, de madeira maciça, revestidos de um verniz vermelho escurecido pelo tempo.
     Ao pegar na tranca do guarda-roupa teve a mesma sensação de quando introduziu a mão no vaso, o metal estava gelado, mas ele foi em frente, abriu uma porta, depois a outra. O que lhe chamou a atenção de cara foi um traje vermelho, com rabo e chifres no capuz, a roupa se sobressaia a todas as outros penduradas, ficava bem no centro, brilhava a ponto de doer seus olhos. Ele teve um desejo imenso de tocar o traje, era liso, gelado, mas tão frio que queimava as pontas de seus dedos, de sobressalto ele recolheu a mão. Havia toda espécie de roupas, femininas, masculinas, números menores, números maiores e mesmo tamanhos extra-grandes.
     Todas as roupas tinham máscaras amarradas nos cabides, mas não eram máscaras de plástico ou de tecido, eram para toda a cabeça, pareciam feitas de pele humana, com cabelos e mesmo com barbas. O menino reconheceu em cada máscara traços de seu pai, a testa grande, o queixo furado, os olhos pequenos, os lábios murchos e finos, contudo, em cada uma, havia uma expressão diferente. Algumas máscaras riam, outras choravam, em algumas havia uma expressão de ira assassina, em outras, um encantamento inocente de quem olha o mar pela primeira vez. Ele tentou achar uma roupa que combinasse com ele, no traje e na máscara, mas foi difícil, sempre havia alguma coisa que não casava.
      Enfim achou algo, que o fazia lembrar os filmes norte-americanos que via no cinema, um calção azul marinho, uma camiseta polo listada de azul e vermelho e uma máscara, o rosto era de um garoto inocente dos anos 1950, como aqueles que os cowboys encontravam numa fazenda no meio do oeste, órfãos de pai, que viviam só com a mãe, garotos com os quais os cowboys mantinham um relacionamento paternalista por um tempo e depois partiam, deixando o menino sozinho novamente. Ele se vestiu e saiu, foi brincar na rua, orgulhoso das roupas que vestia.
      Sentiu-se bem no traje que escolheu, contudo, depois de sair algumas vezes com a roupa e a máscara, o encantamento foi diminuindo, então ele parou de olhar para si mesmo e começou a prestar atenção nas pessoas. Elas olhavam para ele e cochichavam entre si, as meninas riam, e os meninos balançavam a cabeça em desaprovação. O garoto percebeu também que as outras crianças se vestiam diferente dele, foi nesse momento que as vozes começaram a se multiplicar em sua cabeça, dizendo, "que roupas fora de moda, ele veste", "coitado, acho que usa as roupas do pai dele quando era criança", "ridículo, nada a ver, totalmente sem noção esse garoto", "não sabe brincar, está sempre caindo e se machucando".
      Triste e humilhado, ele voltava ao guarda-roupa, tentava outro traje, punha-o sobre o anterior, mas a cada tentativa uma nova decepção, ao mesmo tempo que o guarda-roupa se esvaziava e as opções diminuíam, até que um dia ele só achou a roupa vermelha com rabo e chifres. Ele se recusou a vesti-la, já que seu pai vestia uma igual e nunca a tirava, ele não queria ser igual a seu pai, um homem calado e violento, assim, com medo das pessoas ele se trancou dentro do móvel. Naquele cubículo escuro ele permaneceu, vendo apenas o mundo de fantasias que ele criava em sua mente, fazendo das suas estórias uma realidade para fugir das mentiras herdadas de seu pai. Suas estórias lhe deram algum alento por um tempo, livros e livros eram escritos, quando ele procurava um contexto onde pudesse ser feliz.
      - Você acha que se esconde aqui dentro? Aqui estamos nós dois, aqui sou sua única luz - dizia a roupa vermelha ao menino.
      - Que direitos tem você sobre mim? Nunca te vesti - respondeu o garoto que não se surpreendeu ao ver uma roupa falante.
      - Cada traje que você vestiu continua com você, e quem  você acha que os criou? - respondeu o traje infernal.
      - São suas essas roupas? - perguntou o menino.
      - Sim, cada uma delas, fui eu quem criou, todos os homens de sua família as vestiram, seu pai, seu avô, vestiram todas as roupas, até a última, a vermelha, essa eles nunca mais tiraram, por que você resiste em usá-la? Não vai poder sair e enfrentar o mundo de outra forma - não era a roupa que falava, mas o espírito dentro dela, que se confundia na cabeça do menino.
      - Vou tirar todas as roupas que vesti, aí você não terá mais direito a minha alma.
      - Vai ficar nu? Pode até tirar, mas aí só te restará essa, a vermelha.
"De Olhos Bem Fechados" (Stanley Kubrick/1999)
      O garoto começou a tirar as roupas, uma a uma, as últimas até que foram fáceis, contudo, à medida que chegava às mais antigas, ficava mais difícil. As vestes antigas pareciam presas ao seu corpo, coladas a ele, ele também percebeu que existiam roupas que ele nem se lembrava de ter vestido. À medida que se despia, achou roupas estranhas, trajes femininos, trajes infantis, mesmo fantasias de monstros e animais, ele não se lembrava de ter vestido tais roupas. Contudo, quando as via, fora dele, jogadas no chão do guarda-roupa, voltavam-lhe as lembranças, lembranças terríveis de algo que ele tinha sido e não queria se lembrar. Mas agora eram só roupas, alguns instantes depois de tirá-las e lançá-las fora, as memórias ruins iam embora, como se nunca tivessem sido parte dele. Assim foi, até a última roupa, aquele calção azul marinho com a camiseta polo listada de azul e vermelho e a máscara do garoto dos anos 1950, então ele parou e pensou em voz alta:
      - Esse sou eu, enfim cheguei à minha essência.
      - Sim, esse é você - disse o traje vermelho com sarcasmo.
      "Enfim me encontrei", disse o menino para si mesmo, "agora posso sair e enfrentar as pessoas". Ele abriu a porta do guarda-roupa e se foi. Era noite de sexta-feira, ele queria conversar com as pessoas, beber um pouco, voltar a colocar seus dedos sobre as teclas brancas e pretas de um piano. Assim ele entrou num bar, seguro, convicto que sua desconexão havia acabado, que enfim as pessoas veriam nele alguém como elas, que confiariam nele, o amariam, dariam a ele o direito de fazer parte do mundo real. Lá no fundo do bar, havia um pequeno palco e sobre ele, um piano, ninguém estava tocando, nem havia música no ressinto, era a oportunidade que ele queria para mostrar o que ele tinha de melhor. Ele seguiu, direto para o instrumento, subiu no palco e assentou-se ao piano. Seus dedos correram sobre as teclas de um jeito como nunca tinham corrido, ele tocou um standard dos anos 1940, tocou com técnica e com paixão, as notas pareciam ter vida própria, todos no local se calaram e prestaram atenção à música, tocados com tão linda apresentação.
      Quando ele acabou a música, começaram a aplaudir, então o menino se levantou, extasiado, seu coração sentia um prazer que nunca tinha sentido antes, ele flutuou, sorriu como nunca havia sorrido, se sentia com quinze anos novamente. Então, as palmas começaram a diminuir, uma a uma, até que um silêncio tomou conta da sala. Aos poucos as roupas de todos no lugar foram se transformando, de homens, mulheres, clientes e funcionários, foram ficando vermelhas, até que todos no bar estavam vestidos com aquela roupa vermelha que tinha sobrado dentro do guarda-roupa, todos com rabos e chifres, mascarados como diabos. Desesperado e sem entender o que acontecia, o menino saiu correndo, atrás ficaram as vozes, as mesmas vozes, dizendo, "que roupas fora de moda, ele veste", "coitado, acho que usa as roupas do pai dele quando era criança", "ridículo, nada a ver, totalmente sem noção esse garoto", "como toca mal".
      Ele correu pelas ruas, mas todo mundo vestia vermelho e todos zombavam dele. Ele tentou se esconder com os sem-tetos, com os noias, com os párias, mas mesmo esses escarneciam dele. Então, procurou as prostitutas, os bandidos, os cruéis, esses também não quiseram sua companhia. Enfim, cansado, buscou ajuda dos religioso, entrou num templo e começou a cantar, com todo mundo, contudo, quando prestou atenção no ambiente, quando viu, não aquilo que queria ver, aquilo que os homens diziam haver no lugar, mas a realidade, ele percebeu que lá não só todos se vestiam de vermelho, mas era um traje vermelho especial, não de soldados rasos do inferno, mas de oficiais. Eram roupas luxuosas, feitas dos melhores materiais, e na frente, no púlpito, o próprio príncipe dos diabos dirigia a reunião.
      O menino correu para o único lugar que poderia lhe dar abrigo, o guarda-roupa, fechou a porta por dentro e agachado no chão escuro do móvel, chorou, amargamente. Enquanto procurava em sua alma uma visão, uma fantasia, um sonho, um estória para contar em sua cabeça, uma canção para levá-lo para algum lugar onde houvesse pelo menos um pouco de prazer, ele ouviu uma risada, era a roupa vermelha, sua única companhia dentro do guarda-roupa.
      - Vagabundo, você acha que encontraria alguma alegria lá fora? Você me pertence, isso será assim para sempre, vista-me de uma vez.
      - Não, não vou vesti-la, não vou entrar no seu jogo, não vou adorá-lo, isso nunca - a roupa e o espírito se confundiam novamente na cabeça do menino.
      - O que te restou, além de mim? Comigo você não precisa de fé, eu sou real, basta me vestir.
      - Não, nunca - disse o menino aos berros.
      "Eu não entendo", pensou o menino, "tirei todas as roupas, por que esse diabo ainda tem poder sobre mim?". Foi então que ele entendeu, ainda estava com uma roupa, uma mentira, e isso ainda dava legalidade ao diabo de possuí-lo. Ele pensou, "mas se eu tirar essa roupa, ficarei pelado, talvez não tenha mesmo outro jeito, farei isso". O garoto começou a se despir, essa roupa foi a mais difícil de todas, ele teve que parar de se vitimar, de se fazer de inocente, de criança, de menino, de fraco, de joguete nas mãos dos outros, arrancar esse traje que tinha se misturado com sua pele natural doeu, arrancou-lhe sangue. Todavia, ele teve que amadurecer e virar homem, para ver que a roupa de garoto era realmente algo que não fazia sentido pra ele, ele não era aquilo, pelo menos, não mais.
      Então, quando viu cair ao chão a última peça, quando assumiu sua nudez, sua verdade mais profunda, uma transformação começou acontecer nele. Uma roupa iluminada, linda, toda feita de ouro puro, começou a ser delineada sobre seu corpo, começou nos pés e foi até sua cabeça, não, não era roupa de homem, mas de anjo. Quando a transformação acabou, ele se olhou, e ficou muito feliz, sentiu em seu coração uma paz que nunca tinha sentido, mas entendeu que aquele traje não era mais do que ele mesmo. Agora não se vestia de fantasias, daquilo que os outros diziam ser o melhor pra ele, de trajes infernais, mas de sua essência, sua melhor e mais pura essência.
      - Não, tire isso - gritava o diabo - não posso suportar esse brilho, a luz é muito forte, vai me destruir, tire isso...
      A roupa vermelha que nada mais era que o príncipe dos diabos, não suportava a verdade exposta assim a sua frente, ela foi se consumindo, queimando, até se transformar numa pequena porção negra, resto de um mal que sempre foi engano, e que não tinha outra saída senão escapar pelas frestas do guarda-roupa, escorrer pelo chão da casa, afundar-se na terra até achar no inferno seu melhor lugar.
      O menino saiu do guarda-roupa e enfim, começou a viver, não, ele não virou um super homem, invencível e perfeito, ele era humano, contudo, agora, conseguia conviver com sua humanidade, sem máscaras, sem se importar tanto com o que os outros diziam dele, queriam dele. Ele conseguiu ser ele, único, singular, e mesmo assim não escandalizar ninguém.
      O menino, agora, um homem, achou seu pares, outros que como ele também passaram anos escondendo-se dentro de roupas fora de moda, desconectados da realidade. A roupa que ele vestia agora e que lhe dava noção real da vida, não era física, tecida de matéria, era espiritual, construída de um bom caráter, sincero e sem medos. Agora ele era respeitado e respeitava e podia seguir seu caminho com independência e paz. 

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