quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O homem partido

A alma deixando o corpo (L. Schiavonetti/1808)
      Então, do alto do terceiro céu, o Senhor de todas as almas soprou e o sopro de vida ultrapassou o espaço sideral, venceu a atmosfera terrestre, penetrou o espaço aéreo de um país e chegou até à cidade. Contudo, naquele momento, alguém que não deveria ter acontecido, estava sendo concebido, o prazer egoísta e violento de um homem procurava na fria resignação de uma mulher, tão insatisfeita com sua penitência, um casamento. O espírito de vida entrou naquele minúsculo pedaço de matéria, mas assim meio que de mau jeito, visto a ausência de amor que encontrara. Um humano se desenvolveu, dentro da mulher, depois dentro do mundo, ou melhor fora do mundo, já que aquele homem nunca se sentiu parte de algo. Então ele vagou pela terra, na solidão amante mais fiel dos homens, tentando se encaixar no sistema, mas sempre alienado, não é que ele não quisesse, mas simplesmente não pertencia ao planeta, homem partido que era.
      Tantas vezes, depois de andar pesado entre os homens, fazendo o possível para cumprir suas tarefas de sobrevivência, ganhando algum, tentando sorrir para algum desconhecido em alguma reunião social chata, ele fugia. Seu espírito deixava o corpo com ele ainda no meio das pessoas, tudo ficava distante e o túnel com a luz no fundo já podia ser visto, sua audição falhava, sua visão embasava e a noite era desejada por ele mais que tudo, como era bom deixar aquela farsa. Ele escapava para as ruas do centro imundo daquela cidade, que depois de beber sua alma como uma taça fresca de vinho rosê, lambia os lábios com luxúria, fugia para o colo de alguma profissional barata e feia, da qual ele só queria os ouvidos, mais nenhuma outra parte do corpo gelado da vampira. Seu espírito não estava suficientemente preso ao corpo, sua alma se dividia, e seu corpo resistia ao entorpecimento de um gin com tônica, sentado sozinho num bar, junto de outros corpos também desconectados.
      Mas em seu leito é que ele tinha as experiências mais estranhas, preso na cama e ao mesmo tempo flutuando sobre si mesmo, saindo pela janela, visitando seus tempos. O corpo era torturado com a maior das solidões, ter até o próprio espírito separado, voando dentro de uma casa grande do passado, onde o medo de fantasmas era seu único cobertor, ou num apartamento fantasticamente iluminado pela cena final de "Uma Odisseia no Espaço", sabendo de coisas que ainda não haviam acontecido. A verdade, porém, era que noite e dia, estar dormindo e estar acordado, eram coisas não tinham muita diferença para ele. No começo, contudo, ele ainda podia dormir o suficiente para restaurar parte das energias do corpo, mesmo em suas abduções havia algum descanso, depois vieram as drogas, então, a mente, cansada de tentar conectar partes que já estavam desligadas desde seu nascimento, também quebrou. Nesse processo de auto aniquilamento esgotado por tantos eus, o desejo começou a minguar. Bom para o corpo, que se livrou de situações perigosas, que podiam ter levado o homem às cadeias da lei, por se mostrar por aí sem pudor, ruim para a alma que começou a morrer, quanto ao espírito, separado.

      Em suas andanças o homem partido encontrou o amante dos inícios, ou apaixonado por introduções, esse pseudo-sábio o seduziu com sua ciência. Quanto encantamento havia nele pela arte, o homem-partido aprendeu que bibliotecas são pedaços do paraíso na terra conservados fora da Babilônio nos quais anjos brincalhões permitem que os homens entrem, se alguma propina lhes for dada. Que propina compra anjos? Porções de inocência, os que leem adquirem conhecimento e perdem uma ingenuidade que nunca mais lhes será restituída. O apaixonado por introduções conhecia todas as religiões, filósofos e escritores, discorria sobre tudo isso com paixão, como quem vê a nudez de alguém pela primeira vez, mas era só isso que esse sábio podia fazer. Depois que ele abria uma porta, se assustava com a novidade, então a fechava, quase que imediatamente. Uma bela mulher que aguardava para amar alguém até o anoitecer do outro dia, permaneceria lá, esperando, esse falso sábio poderia até sonhar com a visão, e excitado com ela, se dar algum prazer, mas seria apenas masturbação egocêntrica, nunca uma relação real e completa com alguém. O amante dos inícios nunca teve uma experiência prática com nenhuma das teorias que conhecia, ele não se permitia isso, eram para ser apenas experimentações intelectuais, platônicas e infantis. Ah, se ele tivesse ido até o fim com alguma coisa, poderia ter descartado tantas opções, sabido que elas não levam a nada, que não cumprem o que prometem, eram mulheres que tinham prazer em mostrar pernas, cochas, mas covardes, nunca deixariam que um homem lhes amassem plenamente. Era mulheres de cera, para serem vistas, até amadas, mas não possuídas, eram estátuas de mármore, ninfas gregas idealizadas por algum sonhador que nunca se deu ao trabalho de conhecer nada além de seu ateliê.

      O homem partido conheceu também o vendedor de sonhos, esse quase o enganou de vez, tinha o sorriso paternalista que parecia protegê-lo de sua desconexão, oferecia-lhe abrigo do escuro da noite onde suas discrepâncias mais o aterrorizavam. Contudo, a sala exageradamente iluminada do vendedor, era pequena demais para acomodar tantos compradores, o ar rarefeito e sujo levou o homem quase à loucura, mas para o vendedor estava bom assim. Próximas, as pessoas perdiam suas individualidades, não questionavam, seguiam os rituais, e davam tudo o que tinha para estarem escondidas do mundo pelas paredes brancas daquele lugar que nada mais era que um sepulcro caiado.
      O homem tentou muitas vezes deixar o abrigo daquela gaiola de ouro, sempre que tentava o vendedor lhe vendia um novo sonho. Que bem ele precisava dar para adquirir o sonho? O direito de se dividir, ele teria que resistir ao desejo do espírito de liberdade. Acontecia que na noite em que comprava um sonho, o homem conseguia dormir bem, corpo, alma e espírito se sobrepunham em harmonia. Contudo, na noite seguinte, o sonho se transformava em pesadelo, enquanto ele, que tinha trocado sua liberdade pelo sonho, não tinha para onde fugir senão enfrentar os demônios dos níveis mais inferiores do hades.
      Com o tempo o homem percebeu que a mercadoria do vendedor não levaria a nada, eram sonhos que não se realizavam, ilusões que na verdade só traziam benefício ao vendedor, que ficava mais rico, à medida que a pequena sala branca se enchia de compradores. Esses se tornavam escravos, enquanto o vendedor ficava cada vez mais livre, mas que satisfação pode ter realmente alguém que compra a liberdade dos outros? Mesmo que os clientes se livrassem de seus pesadelos, enquanto presos, tornavam-se cópias ruins do líder inescrupuloso, sem alma e sem espírito, que na verdade apenas queria gozar os prazeres do corpo. Sim, esse era o mistério por trás do vendedor, ele não tinha alma e nem espírito, por isso comprava dos outros, por isso parecia tão feliz, realizado e seguro, era apenas carne vazia, que não sofria, apenas barganhava o que não tinha.

      Outro homem cruzou o caminho do homem-partido de forma especial, o cego dos espelhos. Esse homem realmente era sábio, e se tornou, antes de tudo, um bom amigo do homem-partido, o sábio mostrou a ele como ver o lado bom das coisas, a essência, o que mais importa. Ele sempre tinha uma palavra espiritual para ele, mas esse sábio não era somente um homem de teorias, ele vivia na prática o que falava, e muitas vezes tentou ajudar o homem-partido. Contudo, apesar de bem intencionado, era sempre algo que exigia do homem-partido sacrifícios grandes demais, que não o ajudavam com a realidade. O cego dos espelhos era apreciado nos palco reais e virtuais deste mundo moderno, mas sua vida privada ele mantinha em segredo. O homem-partido nunca conviveu com a privacidade do cego dos espelhos, todavia, um dia, ele o pegou desprevenido e soube de seu maior segredo.
      Convidado para assistir uma das palestras do sábio, antes de começar o evento, o homem-partido quis ir ao camarim para cumprimentar o amigo. Ele entrou por um corredor, na lateral do palco, e perguntou para alguém que fazia a faxina onde era o camarim principal, o faxineiro lhe deu a direção e ele seguiu. Ao chegar próximo ao camarim, ele parou, viu então que a porta estava um pouco aberta, ele achou estranho, porque estava escuro lá dentro. Pensou então que não havia ninguém por lá, então perguntou, "há alguém aí?". Lá de dentro uma voz respondeu, "sim estou aqui, meu amigo, pode entrar", "reconheceu minha voz?", perguntou o homem-partido, "sim, claro, como não". Com a porta aberta alguma luz entrava no camarim, então ele podia ver, o sábio se movia, para lá e para cá, abotoava a camisa, colocava os sapatos, mas tudo no escuro, então ele constatou algo que o deixou estarrecido. Mesmo no escuro, uma fresta de luz entrava e atingia bem no espelho, num determinado momento o sábio se colocou em frente ao espelho, então o homem-partido não acreditou no que viu, ou no que não viu, o sábio não tinha reflexo. Ele não tinha reflexo porque não tinha corpo, mas ele não tinha corpo só na visão dele, não na dos outros. As pessoas podiam ver seu corpo, mas ele, era cego diante de espelhos, não se via. O homem-partido só percebeu isso porque o homem se colocou em frente a um espelho e mirou o espelho. Porque alguém que não se vê olha para um espelho, isso não se pode dizer, mas talvez ele até visse alguma coisa, mas não ele de fato, talvez só ficasse lá, imaginando o que poderia ser, perdido em suas meditações, enganando-se.
      Algumas pessoas cortam a mão para não pegarem em algo que elas acham errado, que as enche de culpas, para as libertar de um vício, vício que não podem escolher não ter, então se mutilam para se verem livres dele. Sim, o sábio pagava um preço alto pela sua sabedoria, ele fazia de conta que não tinha corpo, só via sua alma e seu espírito, quem poderia saber de fato o que seu corpo vivia na realidade? Quantas incoerências deviam haver entre o que seu corpo fazia e o que ele dizia que acreditava sobre alma e espírito? E vejam que ele fazia palestras sobre temas espiritualistas, auto-motivação, positivismo, era um mestre, convencia multidões, mas havia uma mentira nele, que talvez nem ele admitisse para si mesmo que existia. Não, aquele sábio não era um embusteiro, um falso, ele era bom, contudo usava de um subterfúgio trágico demais para encontrar sua coerência, seu equilíbrio, sua paz. Por mais que gostasse daquele sábio, e o homem-partido sabia que o afeto do sábio por ele era verdadeiro, mesmo assim, esse não era o caminho que ele queria para ele, isso não iria resolver seu maior dilema. Não ver, não ouvir, não seriam soluções justamente para quem tinha como maior virtude ver e ouvir demais. Fechar os olhos e os ouvidos era tudo o que o homem-partido não queria, ele desejava poder ouvir e ver tudo e ainda assim conviver bem com isso, sem segredos, sem falsidades, sem dualidades.

      Então o homem partido conheceu o poeta. O poeta não confeccionava versos, não caçava rimas, não construía canções ou resolvia tensões harmônicas, não que não pudesse fazer isso, mas ele era alguém que conhecia o homem integralmente e sabia como harmonizar corpo, alma e espírito. O poeta tomava vinho quando tinha vontade, mas não perdia a lucidez, o poeta se doava o tempo todo com paixão, mas sem possuir ou se deixar ser possuído, nunca cometendo qualquer espécie de violência. O poeta sabia da prioridade do espírito sobre tudo o mais, mas mesmo assim não se privava de confrontos com o que de mais patético e medíocre há nesta vida, ele não fechava os olhos para a humanidade dos homens, sempre tinha tempo em sua agenda. O poeta andava com os pés no chão, sem perder o foco da eternidade, o poeta parava para sentir o cheiro de uma flor, para ver a brincadeira inocente de uma criança, para ouvir a fadiga de um velho. O poeta era simples com os simples, sábio com os sábios e calado com os ardilosos, não se comparava, não criava referências consigo mesmo, ainda que elas naturalmente viessem à tona sempre que ele mostrasse sua alma. Ele não comprava e nem vendia, recebia de graça e de graça dava, a qualquer um que pedisse, sem preconceitos, contudo sempre mostrava o caminho melhor.
      O poeta dedicava longos períodos à meditação solitária, mas ainda que extremamente cansado, não dizia não ao convite de um amigo para uma refeição, o poeta gostava de festas, mesmo que soubesse que a qualquer momento sua morte seria festejada por muitos. O poeta criava sinfonias com corações saciados pela água cristalina de suas palavras, palavras que entregavam luz mesmo aos moradores mais antigos dos becos mais escuros deste mundo. O poeta enxergava a sinceridade no rico, reconhecia arrogância mesmo em alguém que nunca teve nada na vida para se orgulhar, mas era sempre elegante, não humilhava ninguém mesmo que de posse de uma verdade irrefutável, o poeta socorria o órfão e fazia sorrir a viúva. O poeta nunca dizia não, mesmo que só ouvisse e não dissesse uma palavra sequer, só o olhar do poeta já compartilhava esperança, uma nova chance de recomeçar e acertar. O poeta deu ao homem-partido o amor que ele nunca tinha recebido, conectou o ser do homem com laços de prata refinada na fornalha da generosidade, deu inteireza a um ser repartido e agoniado. O poeta foi o amigo que o homem-partido nunca teve e o pai que ele sempre necessitou, o poeta libertou o homem dos fantasmas da noite e fez isso com muita paciência, curou feridas e construiu seu caráter.

     Seres partidos, somos todos, desejos tão distintos, quanto extremados, mente que voa, coração que pesa, alma que vive, corpo que se apaga. Homens divididos, crescidos, meninos, ricos e mendigos, mulheres fáceis, mulheres tristes, difíceis, agridoces. Ninguém nunca teve o que queria, todos nos sentimos insatisfeitos, esfacelados, mal tratados. O tempo não volta e se voltasse seria tudo igual, mesmo se tomássemos uma decisão diferente daquele que tomamos no outro passado, rapidamente, numa próxima oportunidade, faríamos a mesma coisa que fizemos antes, e isso só atrasaria mais o nosso futuro. O futuro será melhor, utopia que escolhi para mim, não abrirei mão disso por nada, a esperança insiste em minh´alma, e se exalta depois de cada xícara de café que tomo, nas manhãs, nas tardes, em cada final de noite. A alegria me acha, escondido atrás dos números, da telas, das teclas, dos mundos, e me enche de palavras, de gente, de histórias, de metáforas pobres e fracas, nunca serão como as parábolas do poeta, quem me dera ser poeta, mas sou homem-partido que achou no poeta alguma integridade. Os tolos sempre chamarão o convicto de arrogante, o simples de ingênuo, o positivo de sonhador, o sábio de covarde, o crédulo de ocioso, o poeta me chamou de homem de bem, isso não fez desaparecer os extremos que trago em mim, mas os temperou, alinhando minha existência com um fim muito maior que eu.

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