quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Um milhão de pedaços de um milhão de estrelas


     "Não dormi bem, a comida de ontem ainda pesa no estômago, preciso parar de tomar cerveja barata. Por mais cansado que esteja, ainda assim não consigo ter um sono profundo, quando estou quase lá, desperto, como de susto, com o corpo saturado de adrenalina. Vou sair da cama, não sei pra que, mas preciso. Está quente lá fora, ainda que eu esteja com frio aqui dentro, a água sai congelada das torneiras, é sempre assim, minha vida na contramão do mundo. Carrego guarda-chuva o tempo todo e não chove, basta esquecer em casa, que cai um temporal. Onde está minha camiseta preferida? Acho que a joguei fora há uns dez anos, ou foi aquela que a minha ex-esposa queimou com o ferro de passar? Tenho certeza que foi de propósito.
      Pasta de dentes com gosto de hortelã, me lembra os anos sessenta, forte demais, fico com esse gosto na boca até o almoço, até a mortadela do lanche fica mentolada. Preciso cortar a barba, os veados me amam de barba, as mulheres me odeiam, mentira, os veados me amam de qualquer jeito e as mulheres sempre me odeiam. Este microondas não aquece mais, tomarei café morno e forte, nunca acerto a quantidade de pó, o açúcar acabou faz tempo, tenho que usar essa adoçante líquido com data de validade vencida, o gosto é horrível. Depois que saí da casa de meus pais, nunca tive pão novo pela manhã, tem as cascas que sobraram no saco do pão de forma, mas a margarina está rançosa, já devia ter jogado fora faz tempo.
      Deixa eu começar meu dia, gosto da televisão ligada, mesmo que só pegue um canal local que transmite sempre as mesmas séries antigas, que eu já vi tantas e tantas vezes. Elas me impressionam com uma boa nostalgia, quando começo a ver, mas no final é só um sentimento de perda, de não ter vivido o suficiente um tempo que não acontecerá novamente. Que mentira, achar que o passado era bom, parece bom agora, que filtramos e superavaliamos as primeiras vezes das coisas, no momento em que vivíamos era tudo carregado de culpas. Aquilo que hoje considero pouco e que acho devia ter vivido mais, no passado era sempre o ultrapassar de fronteiras proibidas.
      Nos tornamos indulgentes com o perigo, com o passar dos anos ele se torna menos temível, contudo, mais e mais insuficiente para nos proporcionar prazer. Enfim, deixo a TV ligada, o som encobre os ruídos lá de fora, o terrível som do dia do mundo exterior, por isso prefiro a noite, quando todos dormem há silêncio e podemos fantasiar mistérios, podemos nos aventurar, trapacear o tédio. Pena não conseguir ficar acordado a noite toda, um cansaço milenar me atrai para o leito, além do mais, detesto dormir com o sol nascendo. Nada mais triste que ligar dois dias sem uma noite de sono, o sono nos mata e nos ressuscita, cria a expectativa de que no novo dia as coisas serão diferentes. Eu tento me enganar, tiro as roupas, deito-me na cama, cubro-me e fecho os olhos, mesmo que não consiga dormir e acorde num outro dia velho, igual a todos os outros, um dia ruim.
      Tentarei escrever algo, vejo tantas coisas enquanto as palavras são desenhadas no meu velho notebook, ruas, pessoas, paixão, na verdade, esse é o único prazer que tenho nos últimos anos. Sexo, dura tão pouco, álcool, nem me faz mais efeito, outras drogas nunca tive coragem de consumir, um dos poucos acertos que fiz em minha vida. Vou fechar as cortinas, esse clarão que entra pelas frestas é tão incômodo, dói os olhos, ele parece que tem vida própria, não quero a luz vermelha lá de fora, realmente devem ter jogado mais carvão na fornalha hoje. Preciso da TV com som mais alto, o povo está barulhento demais esta manhã, sempre reclamando, mas sempre errando.
      Acho que não sei mais escrever à mão, tanto tempo digitando, mas vamos lá, "Não dormi bem, a comida de ontem ainda pesa no estômago, preciso parar de tomar cerveja barata. Por mais cansado que esteja, ainda assim não consigo ter um sono profundo, quando estou quase lá, desperto, como de susto, com o corpo saturado de adrenalina, ainda assim acho que sonhei essa noite, não me lembro bem o que era, mas parecia ser tão bom..."".

      Lá fora, enquanto o homem reescrevia sua história, pela 999999ª vez, as almas eram torturadas, algumas sozinhas, sentadas em cantos escuros e sujos, atormentadas por si mesmas. Outras eram surradas por gangues de espíritos negros, a única cor que conseguia se sobressair em meio às labaredas de fogo que queimavam sem consumir nada, eternas, alimentadas pelo mal que cada alma escolheu durante suas encarnações.
      Mas havia também outros prédios, semelhantes ao que o homem residia, em alguns apartamentos as pessoas, que como o homem não tinham coragem de descer às ruas e enfrentar as chamas, mas também não podiam mais passar o tempo vendo os mesmos programas de televisão todos os dias e escrevendo as mesmas coisas, olhavam vidas alheias. Elas desdenhavam de algumas pessoas, desprezavam outras, achavam-se protegidas em seus apartamentos minúsculos e cheirando a mofo, não sabiam que uma semana de ociosidade as levariam ao chão do mundo inferior. Esses espectadores inertes tinham os rostos transformados, de tão horríveis que eram, perderam qualquer traço que pudesse reconhecê-los como seres humanos, eram apenas espelhos do horror que dominava aquele submundo amaldiçoado, como reflexos não tinham qualquer originalidade neles. O homem ainda resistia ao seu destino, vendo TV, escrevendo e escrevendo.
      Às vezes, depois de muito esforço, ele conseguia escrever algo inédito, algo bom, algo que não fosse a mesma história de sempre de sua vida. Escapava alguma poesia de suas palavras, assim uma flor era criada, uma flor rara, única, com as cores das vestes dos querubins. Ela saia do notebook, flutuava pela sala, escapava do prédio, pairava sobre o inferno e continuava subindo, até sair do fogo eterno. Seu perfume era sublime, leve, mas tocante, e enquanto a flor subia, alguns dos espíritos negros ficavam atordoados com o cheiro dela, eles não viam nada, não sabiam de onde vinha o aroma, mas por alguns momentos até paravam de executar seu trabalho infame.
      Então, livre no espaço, aquela flor, única, depurada de tanta dor, se transformava em uma estrela, pequena, distante, mas que brilhava forte e linda na imensidão de um universo vazio. Essa estrela pulsava, como o coração de um recém nascido, a princípio com menos força, mas cada vez mais e mais forte, assim, quando alcançava seu limite, explodia em um milhão de pedaços. Cada pedaço caia, conseguindo penetrar o mundo das chamas eternas. De maneira extraordinária, cada pedacinho encontrava uma alma em sofrimento, penetrava nela e tocava diretamente o coração do castigado. O vermelho dos corpos virava pele nova, as faces monstruosas se acalmavam e achavam a paz, os olhos vermelhos que já tinham desistido de chorar, dos quais as lágrimas haviam secado há muito tempo, ficavam brancos, serenos.
      Os espíritos negros se afastavam, pareciam receosos, sem entender nada, não conseguiam mais continuar seu trabalho de flagelo de almas, assim as almas eram libertadas, cada uma com um pedacinho de estrela. As almas então ascendiam, ganhavam o espaço e se tornavam livres para fazerem novas escolhas e serem felizes. O escritor não sabia, mas quando um milhão vezes um milhão de almas fossem libertadas, ele também seria, só tinha que continuar escrevendo, tentando reinventar sua vida, buscando, com todo o seu coração algo de bom, de novo, de diferente, algo que pudesse ter feito valer a pena tudo o que ele viveu, isso existia, era possível, só precisava que ele não desistisse.

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