quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Elo perdido

      - Um café.
      - Puro ou com leite.
      - Puro, por favor - se eu quisesse com leite teria pedido, não precisava perguntar.
      Lá vem ela, de vez em quando some, mas via de regra aparece por aqui, e senta-se sempre no mesmo lugar, nas mesas do fundo, à esquerda, de preferência na do canto, de óculos escuros, linda demais. Uma mulher assim, sozinha, não entendo, talvez seja agora, na tarde do sábado, com certeza é por opção, deve haver um monte de homens atrás dela.
      - Seu café, senhor.
      - Obrigado - do jeito que eu gosto, quentíssimo e forte, pra levantar minha tarde.
      O lugar é arejado, aberto, ventiladores e não ar condicionado, ambiente muito gostoso. O vento está batendo nos cabelos dela, cabelos finos, lisos, um castanho claro, quase loiro, mas tudo nela é perfeito, nariz afilado, lábios pequenos, mas bem cortados, parece projeto de Oscar, ela não é gordinha, mas também não é magérrima, um metro e setenta e pouco, seu DNA devia ser guardado no Smithsonian. Irrita-me esses caras que trazem notebook pro Café, uso o computador o tempo todo, aqui quero mais é olhar o mundo real, evito até abrir celular, dificilmente peço senha de wi-fi. Ela está olhando o celular, é perfeita, mas ainda é mulher, um defeito? Sei lá, gays também não se desligam do celular, falando em gay, lá vem o Benjamim.
      - Maurício, tudo bom?
      - Tudo ótimo, senta aí.
      - Mas é rápido, só vim tomar um café, nem almocei.
      - E aí, trabalhando muito?
      - Tem Casa Cor na semana que vem, simplesmente não vai dar tempo de fazer tudo.
      - Você diz isso todo ano.
      - Mas agora é verdade, Mau - esse cara, sempre me faz rir, adoro o jeito deles, tudo é sempre dramático, eles não vivem a vida, eles atuam, e sempre com muita elegância.
      - E sua chefa?
      - Aquela sapatinha é terrível, ainda mais quando está sem namorada, desconta tudo em mim.
      - Ela é competente.
      - Também, com quase sessenta, acho que aprendeu alguma coisa, né?
      - Tem gente que vive e vive, e nunca aprende, sempre repetindo os mesmos erros.
      - Seu café, senhor.
      - Obrigado, lindo.
      - Você deixou o garçom sem graça.
      - Mas ele é lindo mesmo - Ben não tinha muitos filtros, não era promíscuo, apenas carente, aliás, acho que promiscuidade não existe, não como defeito moral, é apenas carência em busca de soluções equivocadas. Todos, porém, somos carentes, a diferença é que alguns não admitem que são, as carências movem o mundo, mudam governos, fazem guerras.
      - Já vou, beijo.
      - Até mais Benjamim - um judeu gay, é muita identidade para um ser só, sou privilegiado por ter um amigo assim, consegue viver de decoração porque nasceu num meio onde todos têm dinheiro para consumir isso, seus clientes são seus parentes e amigos da infância. Mas quem é aquele camarada sentado com ela?
      A conversa não parece amistosa, ele é grandão, desses riquinhos que passam o dia em academias queimando o cartão de crédito do pai. Ela tirou os óculos, é impressão minha ou está chorando? Está sim... limpou o rosto com os lados das mãos... ele pôs a mão não braço dela, ela tirou, as coisas não estão bem naquela mesa... ele se levantou, está vindo pra cá, ela vem atrás dele, cabeça baixa, deve odiar escândalos, é fina demais pra barracos... ele esbarrou na minha mesa...
      - Desculpe-me, amigo - que amigo mais sem amigos, amigo da onça, isso sim.
      - Não foi nada - ela passou... olhou pra mim, a vi sem os óculos, seu olhar perfurou minha alma, uma beleza solitária... saíram da Café.

      O dia está claro, céu limpo, o outono faz seu prelúdio para a estação mais fria, gosto demais desse momento do ano.
      - Garçom, por favor, aquela moça que saiu com o cara, sabe o nome dela? - cometi uma dessas minhas impulsividades que sempre fazem com que eu me arrependa depois.
      - Ana Clara, é filha de um usineiro rico da região.
      - E o camarada?
      - Outro herdeiro de usina de açúcar, noivo dela, Marcos.
      - Ok, obrigado - nunca vi esse cara no Café.
      Não vou sair daqui tão cedo, ir pra onde? Trabalho em casa a semana toda, quero ver gente. Aquelas duas senhoras também estão sempre por aqui, mas será que com tanta mesa vaga elas vão querer sentar logo perto de mim? Sentaram, e como falam alto...
      - Ela está com depressão - não tenho nada pra fazer mesmo, vou prestar atenção à conversa.
      - Verdade, Zuleica?
      - Síndrome de pânico, não sai de casa há semanas.
      - Também, sempre foi mimada, pelos pais e depois pelo marido...
      - Ex-marido, amiga, ele está na Espanha com uma mulher com idade pra ser filha dele.
      - Neta, pelo que me falaram - ambas já sabiam da história, mas falavam como arautos dos bons costumes, para que todos soubessem, de alguma maneira isso as fazia sentirem-se melhores, ou simplesmente colocava assunto nas conversas.
      - Dois cappuccinos com conhaque.
      - Pode caprichar no conhaque - elas cheiram cigarro, do que adianta tanta maquiagem? Peles esbranquiçadas, devem ser geladas, peruas.
      Enquanto bebem a conversa fiada para, ainda bem, mas é sempre assim, logo vão embora, não sabem curtir o ambiente, defuntas, não têm mais prazer na vida, só em matar os outros com as palavras, vou ler um pouco.

      - Garçom, me vê uma Stella Artois e uma esfirra.
      - Ok.
      - Dezessete horas, já estou aqui há quase três, tanta gente já entrou e saiu, os garçons estão acostumados comigo, o turno deles muda às quinze, mas eu continuo por aqui, vou aproveitar para ir ao banheiro...
     Este banheiro é tão limpo, que bom, estou sozinho, dá pra ter alguma privacidade... alguém entrou, um celular está tocando... "Marcos? É o Filipe, está sumido... o que é que foi?... calma, cara... tem certeza?... isso pode ser arranjado... conheço um cara que conhece um cara... deixa comigo, mas fica tranquilo, se a Ana Clara estiver te traindo a gente descobre e dá um jeito... vejo, vou falar com o cara, depois te retorno... que isso, amigo é pra essas coisas... abraço"... eu ouvi bem a história? Marcos, Ana Clara? Parecem ser a moça e o namorado, vou esperar um pouco, deixa o cara sair que eu saio.

      A cerveja e o salgado não caíram bem, também, comi às pressas, por que eu tinha que ficar naquele lugar tanto tempo? Se eu tivesse voltado pra casa antes, não tinha ouvido aquele telefonema. Um cara que conhece o cara, não pode ser só um detetive particular, é conversa de bandido, esses moleques mimados, não suportam nãos, e se o tal Marcos quiser usar de violência com a Ana Clara?

     Este Café fica num lugar da cidade meio longe do centro, não há nenhum shopping center próximo, contudo tem dois condomínios por aqui, um residencial, de alto padrão, e outro de escritórios, os frequentadores são assíduos e geralmente gente que mora ou trabalha perto. Tudo o que eles servem é mais caro, poucos pagam sete reais numa xicrinha de café ou quinze num salgado. Eles usam pós selecionados, importados, só coisa de primeira linha, acho que sou o sujeito mais pobre que vem aqui. Acordei encanado com a história de ontem, vim disposto a ficar de tocaia, vou permanecer aqui no canto, perto da porta, escondido nos óculos escuros. Vamos ver se os personagens aparecem, peguei um Dostoiévski, passar o tempo não vai ser tão difícil.
   
      Já li umas vinte páginas do russo, passa das treze e trinta, mas enfim chegou alguém, o Marcos e um outro cara, deixa eu disfarçar, vão passar por mim...
      - Fica tranquilo, Marcos.
      - Vaca.
      Não tenho dúvidas, não vi o rosto do sujeito, mas guardei bem a voz, é o mesmo do celular no banheiro, bem escroto ele.
      - Onde você quer sentar?
      - Pode ser aqui mesmo - acho que tenho imã, tinha que ser bem ao meu lado? Cara de paisagem, quero ficar invisível, vou entrar neste livro e sumir, ainda bem que sou pequeno, nem vão me notar, mas espera, vou fazer uma coisa, vou colocar meu celular pra gravar, aqui, em pé ao lado do açucareiro, está escondido, ninguém vai ver...
      - O cara seguiu-a ontem à noite.
      - Como assim, eu saí da casa dela meia-noite?
      - Meia-noite e pouco ela passou pela portaria do condomínio.
      - Onde ela foi?
      - On-Blues Bar.
      - Ela disse que estava cansada, que ia dormir...
      - Tinha um cara esperando por ela, ficaram por lá até as duas da madrugada, depois saíram.
      - Juntos?
      - Não, ela voltou pra casa sozinha.
      - Pega esse cara que estava com ela e dá-lhe um belo susto...
      - Como assim?
      - Umas pancadas...
      - Tem certeza?
      - Tenho - está tudo no meu celular, vou me mandar agora, não posso ficar aqui nem mais um segundo... droga, tropecei na cadeira, caiu tudo no chão...
      - Precisa de ajuda, amigo?
      - Não, obrigado - caramba, o amigo bandido do Marcos falou comigo... eles estão se levantando, vão embora, quer saber, vou ficar...
      - Fica tranquilo, acontece, em tarde de domingo está todo mundo de ressaca do sábado...
      - Eu nem bebi. Me vê outro café, por favor - quando a gente não precisa parece que todo mundo nos dá atenção.
      - Com leite?
      - Não puro! - cacete, eu não tomo café com leite, não num lugar desses...

      Quatro horas da tarde, estou mais calmo, mas preciso fazer alguma coisa a respeito.

      Quatro e meia, Ana Clara está entrando no café, vai ficar longe de mim, sentada lá no canto dela, está linda, mas o que se passa por baixo daqueles óculos, quem sabe? Cabelos presos, geralmente ficam soltos, legging preta, camiseta básica branca e rasteirinha nos pés, não se produziu muito pra sair, deve estar mal...

      Ela já tomou o café, daqui a pouco vai embora, tenho que aproveitar esta oportunidade, pode ser a última, vou até lá e conto tudo. Ela não vai entender, vai dizer, quem é você? Eu não te conheço, não acredito no que você está dizendo. Vou pagar o maior mico. Mas não posso guardar isso comigo, vou avisar, aí é com ela, farei minha parte. Mas ela está se levantando, vai embora, vem vindo pra cá...
      - Ana Clara? - ela não vai dar nem bola...
      - Sim? Eu? - que educada...
      - Você não me conhece, mas eu preciso falar com você.
      - Ah, tudo bem - ela está sentando ao meu lado, fantasiei isso tantas vezes...
      - Quer um café?
      - Não obrigada, acabei de tomar - de perto ela é ainda mais bela, que pele, não tem um milímetro de maquiagem, e como cheira bem...
      - Então... - congelei, esqueci o que ia dizer...
      - Sim?
      - É o seguinte... - quem sou eu?
      - Está tudo bem com você? - ela tocou minha mão, nunca mais vou lavá-la... preciso falar, vou direto ao ponto.
      - Meu nome é Maurício, Marcos é seu namorado, não é?
      - Sim, mais ou menos...
      - Sem querer ouvi uma conversa dele com um amigo, ele mandou segui-la ontem à noite, ele soube do seu encontro no On-Blues Bar e não gostou, vai mandar um cara pegar a pessoa que estava com você, acho que vão machucar seu amigo...
      - Meu Deus, mas como você sabe disso?
      - Eu gravei a conversa no meu celular, quer ver?
      - Sim - ela se aproximou de mim, para ver a tela, estou tremendo...
      - É o Danilo, o amigo dele, parece que é isso mesmo que você disse...
      - Sei que você não me conhece, mas por favor, acredite em mim...
      - Eu já vi você por aqui, aliás, várias vezes... - que sorriso maravilhoso...
      - Venho sempre aqui...
      - Bem coisa do Marcos, possessivo, mas não sabia que ele podia chegar a esse ponto.
      - Pega meu número, se precisar de alguma coisa, me liga...
      - Obrigada, vou ver o que faço.
      Ela está indo embora, com pressa, o que vai acontecer agora? Vou respirar fundo e pedir uma Stellinha...

      Na tensão do momento, nem percebi, mas em uma mesa bem ao meu lado, estavam as duas defuntas, quando me dei por conta e olhei pra elas, as peguei caladas, com as bocas abertas, com os olhos fixos em mim, assustadas. Não sei em que momento elas chegaram, mas parece que tinham ouvido tudo. A cidade está quieta, meu apartamento escuro, vou ler mais um pouquinho antes de dormir...

      Uma hora da manhã, quem estaria me ligando agora?
      - Alô? - o número não está sendo identificado pelo meu aparelho.
      - Alô, é Ana Clara, é o Maurício?
      - Sim... - que voz no meu ouvido, em minha cama, em meu quarto...
      - Obrigado por você ter me falado tudo aquilo.
      - Que isso, só quis ajudar...
      - Mas eu nem precisei fazer nada...
      - Por quê? O que é que houve?
      - A mãe do Danilo ouviu ele conversando com os caras que me seguiram e não gostou nada, ela já não estava bem de saúde, está numa crise de depressão brava, mas parece que o ocorrido foi a gota d´água, ameaçou de cortar a mesada dele, cartão, esses playboys só mudam de atitude assim, quando se veem sem grana...
      - Que mundo pequeno - eu disse com a certeza que a mulher com depressão da conversa das fofoqueiras era a mesma, mãe do mau caráter.
      - Como assim?
      - Digo, como você soube de tudo isso? - tentei arrumar o que eu tinha dito em voz alta pra mim mesmo.
      - Minha tia Zuleica me contou, aconteceu tudo agora à noite - não acredito, é uma das velhas defuntas...
      - Mas e o Marcos?
      - Eu o coloquei em seu devido lugar, o que faltava era eu me posicionar com autoridade com ele, ao invés de ficar me fragilizando.
      - Desculpe-me por invadir sua privacidade, mas não sei como alguém como você estava com um cara como ele.
      - Alguém como eu?
      - Sim, inteligente, educada, linda... - coloquei o linda no final da frase estrategicamente, na verdade, para um apaixonado platônico profissional como eu, inteligência e educação importam menos que beleza. Nós, nos apaixonamos pela deusa de mármore, quieta e à distância, sonhamos com algo que achamos que a deusa é, e que muitas vezes na realidade nem é. O objeto dos românticos covardes como eu são finos corpos de arte inflados com a ilusão da mulher perfeita, aquelas dos filmes de Hitchcock, das canções...
      - Acho que essa não sou eu... - ela sorriu.
      - Mas o Marcos não te ameaçou? -  tento voltar ao assunto.
      - A mãe do Danilo contou pra todo mundo sobre os amigos malandros que ele tem, falou para os pais do Marcos sobre as ameaças a mim, pelo menos foi o que a tia Zuleica me falou - e aconteceu tudo isso numa noite? A alta sociedade é um universo pequeno, em todas as cidades elas existem, na maioria das vezes, nós, das classes b e c, nem ficamos sabendo o que acontece no meia dela, seus membros se protegem, fazem escândalos como os que acontecem na classe média e baixa, mas escondem tudo debaixo do tapete.
      - E você, como está?
      - Vou aproveitar e fazer uma viagem, tenho uma amiga na Espanha, está lá com um novo namorado, vou encontrá-los - e o círculo se fecha mais uma vez, acho eu.
      - Desculpe-me por perguntar, mas e o seu amigo, o do On-Blues Bar?
      - Tadinho, é só um amigo, o Benjamim - como? Onde? Por quê? O Ben? Mas, mas, ele é gay? Tenho certeza, não está tendo um caso com a Ana Clara de forma alguma, que confusão, e eu no meio disso tudo. Entre todas essas pessoas, eu sou somente um elo perdido.

Nenhum comentário:

Postar um comentário