domingo, 14 de fevereiro de 2016

Essência

      - Oi Roberto.
      - Oi.
      - Vai almoçar?
      - Vou.
      - Estava a fim de comida chinesa.
      - Também, vamos nessa.
      Juntos andaram mais uma quadra e chegaram ao restaurante chinês mais próximo. Depois de se servirem, sentarem-se e comerem, o silêncio incômodo lançava os olhares para outros lugares, algumas vezes se quer estar sozinho e não acompanhado.
      - Gosto da comida daqui, sabor forte, variedade - disse o amigo.
      - Você sabe que isso que chamamos de comida chinesa não é chinesa, né? - observou Roberto.
      - Ah, sim, é comida ocidentalizada, com alguns elementos da China, mas na China, de fato, eles não comem isso exatamente, seja como for eu gosto.
      - Eu também.
      Levantaram-se, pagaram as contas e voltaram, Roberto entrou em seu prédio, o outro Roberto seguiu mais um pouco até o seu prédio, de volta para o segundo período de trabalho. Era terça-feira, a semana mal começara.

      Roberto chegou em casa, o apartamento era minúsculo, banheiro e outro cômodo com cozinha e sala separadas por um balcão, ele dormia no sofá. O monitor de imagens era enorme, tomava quase a parede inteira, as placas finas de áudio revestiam todo o lugar.
      - Ano quarenta e um, mês quatro, dia vinte e cinco, vamos ver o que acontece nesse dia. Monitores, passem somente os momentos com interações com outras pessoas. Não aguento mais ver os momentos solitários, minha essência só pensava em morte.
      As memórias ficavam armazenadas em sua cabeça, mas ele preferia vê-las na tela grande do apartamento, então fazia a transferência. Ele podia ver partes dos registros do dia, não integralmente, se preferisse. Tirando as interações profissionais, que Roberto também mandou pular, só restou um telefonema, que sua essência fez a uma mulher.
      - Alô?
      - Mônica.
      - Oi, é Homero, é aí, muito cansada?
      - Um pouco - voz preguiçosa, estava na cama com sono.
      - Como foi o dia? - Homero estava excitado, concentrava-se nas palavras, queria as palavras certas.
      - Como sempre, a chefa fazendo aquelas reuniões intermináveis que nunca dão em nada.
      - Entendo, pior que reunião são vídeo-reuniões, tenha dessas de vez em quando.
      - Queria fazer outra coisa, ao invés de matemática.
      - Li um texto interessante hoje, "Possuir é perder, sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência.", de Fernando Pessoa -  ele queria profundidade.
      - Legal, é por aí mesmo - ela só queria dormir.
      - Você está cansada, né?
      - Um pouco, me liga amanhã - ela nem pegava, nem largava, tipicamente fêmea.
      - Está bom, abraço, bom sono.
      - Obrigada.
      "Sou o cara mais chato do mundo, sempre digo as coisas erradas nas horas erradas, quando vou aprender?", pensou Homero. O telefone mal havia desligado e tocou novamente, Homero atendeu. "alô? alô?", silêncio, ninguém falava nada, "alô?", então desligaram, nenhum número tinha sido identificado pelo telefone. Homero pensou, "o que foi isso, não é a primeira vez".
      Foi tudo o que Roberto viu, reafirmou o que ele sempre achava de sua essência, um loser.
 
      - Oi Roberto.
      - Olá, tudo bom?
      - Mais ou menos...
      - O que foi?
      - Vou ser transferido.
      - Como assim?
      - Sou o único solteiro da turma, sobrou pra mim, precisam de alguém em outro lugar.
      - Então você foi promovido.
      - Sim, mas não queria sair daqui, gosto da cidade.
      - Fazer o quê, vamos almoçar?
      - Acho que não, vou à praça.
      - Está bom, depois passo lá.
      Seu amigo estava desconcertado, não queria deixar a cidade, sentiu-se objeto, sem independência, apenas uma peça do sistema, podia ser movido ou trocado quando quisessem, sem que ele pudesse fazer nada para impedir, era apenas uma marionete em mãos mais maiores. Roberto tentou consolá-lo, dizer aquelas coisas metafísicas absolutas que não confortam ninguém de fato, que Deus sabia o que fazia, que tudo estava sob controle, que algo melhor e maior o surpreenderia, que ele precisava crer e seguir em frente. Mas que argumento convence uma alma ferida, que sente que é usada e que nunca tem opção de realmente escolher o que realmente quer para si?

      - Ano quarenta e um, mês quatro, dia vinte e seis - disse Roberto - mesmas preferências da última vez.
      - Se seguir as mesmas preferência não existe nada para ser visto - responderam os monitores.
      - Então pode passar o que aconteceu integralmente após às dezenove horas
      Roberto só queria ver o que sua essência tinha feito em suas horas de lazer, sua vida afetiva, se é que ela existia, o mais não interessava. Às vezes, olhava só como um ritual diário, já que se não visse no dia, não poderia ver nunca mais, então, em seu processador cerebral só restariam as próprias memórias. Essas, contudo, não eram fidedignas, algum defeito de fabricação dos processadores de memórias pessoais mudava aquilo que era visto originalmente, podia tanto subtrair coisas, como adicionar, os Robertos não sabiam disso.
       Homero chegou tarde naquela noite, comeu um resto de pizza do domingo, viu um pouco de televisão, e mais nada. Roberto, que procurava ansiosamente por algo novo, uma  nova experiência, uma nova emoção, acabou de ver o vídeo frustrado, nada havia acontecido na vida de sua essência. Porém, um novo telefonema, sem identificação, tinha sido atendido por Homero, ele até ouviu uma respiração forte, som do televisor ligado no fundo, mas sem falar nada, a pessoa tornou a desligar.
      Ainda se questionava sobre Homero, quando seu processador interno acusou mensagem de manutenção: "comparecer amanhã para troca de peça na cabeça, o controle central acusou sensibilidade à falta desequilíbrio de energia entre funções vitais, o descanso programado para o período noturno pode não estar devidamente calibrado para corresponder às necessidades do trabalho realizado durante o período diurno". Em outras palavras, a frustração de Roberto estava prejudicando seu sono.
   
      Roberto foi ao hospital na sexta-feira à tarde, só fez isso porque a manutenção era nível dois, com três dias no máximo para resolver, ele não queria fazer isso no sábado. Quando era manutenção nível três, com mais tempo para resolver, ele sempre deixava para a última hora, Roberto odiava hospitais. Fizeram a troca da peça e aproveitaram para fazer um check-up geral, aí foi obrigado a ouvir do médico aquelas ladainhas de sempre.
      - O colesterol está meio alto, a hérnia de disco aumentou, cuidado com o fígado.
      - Passo a vida sentado e bebendo.
      - Exercícios, andar um pouco todos os dias ajuda bem, o colesterol é o regime que eu já te passei, maneire nas biritas.
      - Ok.
      - Somos simuladores dos corpos carnais de nossas essências, temos algumas qualidades a mais, contudo, os mesmos defeitos. Os humanos acharam que isso, os defeitos, importam mais que as qualidades, para que tenhamos uma vida semelhante a deles, emocionalmente.
      - Que burrice, viveram três mil anos achando defeitos neles, para depois criar cópias com os mesmos problemas, eu teria tirado alguns.
      - Até tentaram, mas a mesma sofisticação que deu a nós capacidades de vivermos como os humanos, também nos deu doenças, físicas e psicológicas, no final das contas somos só imitações.
      - Seja como for, nós conseguimos sobreviver às doenças que eles mesmo criaram, eles não, foram extintos.

     À noite, Roberto viu mais uma memória diária de Homero, estava desanimado e se perguntava: o que o ajudava, saber mais sobre sua essência? Auto-conhecimento, para quê? Depois viu alguma reprise de série antiga na TV, uns quatro episódios diretos, os monitores tiveram que se desligar automaticamente.

     No sábado Roberto queria fazer algo diferente, filmes de dramas psicológicos e ficção científica não preenchiam mais sua necessidade de prazer, ele precisava interagir com a realidade, assim resolveu que iria a um lugar onde houvesse música para dançar, música alta e álcool talvez fizessem algum sentido, faziam sentido para muita gente. Seu amigo também queria fazer algo diferente, numa despedida daquela cidade que ele tanto gostava.
      No canto do balcão, ele segurava um copo de uísque, seus olhos fitavam o amigo, dançando com alguém, alguém que acabara de conhecer, um rapaz novo, magro e elegante.
      - Por favor, uma taça de espumante - alguém gritou para o barman, era uma mulher bonita, madura, mas ainda com sorriso de adolescente, Roberto não resistiu.
      - Champanhe, que chique.
      - Eu gosto - disse ela com um sorriso tranquilo, com uma convicção elegante, que não se impunha, apenas dizia o que gostava, mas não queria incomodar ninguém com isso.
      - Tudo bem. - respondeu Roberto, com um sorriso forçadamente charmoso e másculo no rosto, mas ele precisava dar continuidade à conversa.
      - Gosta de dançar?
      - Acho que sim, minha essência deve gostar -  ela se apoiou no balcão, segurou o rosto com a mão direita, fixou rapidamente os olhos sobre os olhos de Roberto e depois os deixou cair, não para o corpo dele, mas de sua timidez. Ele se apoiou com os ombros no balcão, deu um gole na bebida, mais para fazer tipo que para saborear o uísque, e pensou rapidamente em algo que pudesse prender a mulher àquele lugar.
      - Eu ainda não entendi o que minha essência quer.
      - Mônica não tem muitos cadeados, curte de tudo.
      - Mônica é o nome de sua essência? - perguntou ele assustado.
      - Sim, qual o nome da sua? - ele teve medo, não queria entregar o jogo assim, por outro lado não existem somente uma essência Mônica no mundo, poderia ser outra, mas e se não fosse, e se ela conhecesse Homero? Roberto fez aquilo que mais fazemos em jogos de sedução, mentimos.
      - Humberto. Como é a Mônica?
      - Mal nos conhecemos e você quer saber como é minha essência? Isso é muito íntimo, Roberto - disse a mulher com um sorriso gostoso no rosto. As mulheres são assim, podem até ir para a cama com você e fazer de tudo e mais um pouquinho com os corpos, mas não pergunte sobre o que existe em seus corações, isso sempre será um mistério, homem ou robô algum conseguiu lidar com isso.
      - Eu sei, me desculpe - "já estou eu fazendo a coisa errada novamente", pensou Roberto, "quando vou controlar minha ansiedade?".
      Eles conversaram bastante, ele citou o nome Homero algumas vezes, meio que dando uma indireta na mulher, contudo, Roberta parece que nunca havia conhecido ninguém com esse nome.

      Na segunda-feira à noite, Roberto fez de tudo para esquecer o assunto, mas o número de telefone que Roberta tinha passado a ele voltava à sua memória, queimava seus microcircuitos. "Se eu não ligar pra essa mulher vou ficar maluco, o que de mal pode acontecer, eu receber um não? Com isso eu já estou acostumado", ele pensou.
      - Alô?
      - Oi.
      - É o Roberto - o processador interno de Roberta identificou a identidade daquele que falava com ela, já que ele não se lembrava do tom de voz do cara que tinha conhecido no sábado à noite. Num mundo onde tudo é registrado e controlado por processadores, todos terem o mesmo nome não importa.
      - Roberto... ah, o programador biogênico de sábado, tudo bom com o senhor?
      - Sim, acho que falei demais de mim mesmo, você já sabe tudo sobre mim, pronto, acabou-se o mistério.
      - Ninguém nunca sabe tudo sobre alguém, Roberto, mesmo depois de se viver cinquenta anos com uma pessoa, na maior das cumplicidades.
      - Você tem razão, e como foi seu dia?
      - Como sempre, a chefa fazendo aquelas reuniões intermináveis que nunca dão em nada. Queria fazer outra coisa, ao invés de matemática.
      Ela disse as mesmas coisas que a Mônica disse, não pode ser, sua essência é a Mônica do Homero, concluiu Roberto confuso, mas se é, como ela não conhece o Homero? Pensou ele.
      - Você é professora?
      - Sim, mas agora trabalho com coordenação regional da minha área, quase uma funcionária pública.
      - Minha área é desenvolvimento de projetos biológicos, eles estão sempre querendo melhorar nossos corpos, mas com certeza os melhores upgrades poderão pagar só os mais ricos.
      - É o mundo, sempre foi assim, e parece que ninguém aprende com os velhos erros.
      - A gente estuda desde pequeno na escola que o mundo das essências acabou por causa de egoísmo, de ricos querendo dominar sobre pobres, de mau zelo na administração do planeta, mas acho que um dia vai acontecer tudo novamente.
      - O mundo moderno é diferente, Roberto, hoje existe mais respeito com as diversidades, com as escolhas pessoais, e todos têm as mesmas chances, só não se dá bem quem não quer.
      - Você sabe que isso não é verdade, há politicagem, negociatas por baixo do pano, corrupções, e muita coisa é escondida da maioria, tudo é manipulado.
      - Prefiro pensar na minha vida, já é tão difícil, não fico perdendo tempo com teorias de conspiração - Roberta era prática, Roberto um sonhador.
      Ele conversou umas duas horas com ela, ela até admitiu que sua essência conhecia um programador biogênico, mas nunca viu Mônica se referir ao nome dele, parece que o tal Homero era apenas um amigo que Mônica tinha, alguém por quem ela até tinha certo afeto, mas ninguém especial. Bem, nem o nome do cara ela se lembrava, não ficou gravado nas memórias da essência, não foi alguém que de alguma forma fez diferença em sua vida.
   
      Na terça-feira de manhã, antes de começar o serviço, Roberto foi dar uma olhada na caixa de mensagens, uma mensagem com o marcador de cruz negra chamou sua atenção, ele até hesitou em abrir, sabia o que significava aquele sinal. "Comunicamos aos conhecidos, cujos endereços eletrônicos foram encontrados na lista de Roberto 9.004.563.810, que ele faleceu nesta madrugada, vítima de queda do trigésimo terceiro andar do prédio em que residia. Os registros de memória pessoal mostram ele se jogando, mas por enquanto não sabemos se isso foi um fato, ou uma imaginação, portanto, até o momento, não pode ser afirmado o que causou a queda. A polícia está investigando, o que se sabe com certeza é que ele estava sozinho em seu apartamento, nenhum visitante foi constatado pelo processador zelador do prédio, seja como imagem, áudio ou outros dados". Roberto, o amigo de Roberto, tinha se suicidado, era isso mesmo? Como assim?
      Roberto conhecia o amigo, vivia com ele, tomavam suas refeições juntos muitas vezes por semana, até saía de vez em quando para se divertir com ele. Roberto sabia que Roberto não tinha aceitado muito bem sua transferência, mas isso teria sido tão sério assim, a ponto dele desistir da própria vida? Um pouco abaixo, da mensagem com o marcador de morte, havia outra mensagem do ministério público, essa específica para Roberto: "Como de vontade de Roberto 9.004.563.810, conforme termo assinado e autenticado por ele em cartório, ele passa para seu amigo Roberto 9.002.745.360 os direitos às memórias de sua essência, a partir do seu último dia de vida como organismo cibernético".
      O corpo do amigo já havia sido incinerado, suas memórias tinham sido transferidas para o processador do apartamento de Roberto. Ele chegou em casa com um misto de curiosidade mórbida e receio, receio esse criado por um certo sentimento de culpa. Nem acendeu as luzes e já pediu para que os monitores executassem o arquivo da essência do amigo, mas não havia nada mais que registros da noite do suicídio. Nem sempre era assim, alguns casos, a morte do Roberto aconteceria, sendo que a essência ainda teria muitos dias, mesmo anos, de vida. Acontecia o contrário também, a essência morrer, mas o Roberto insistir em continuar vivendo, sozinho, sem lembranças de sua essência vital para acompanhá-los na existência.
      Roberto pode ver também uma memória pessoal do amigo, ele viu um apartamento sujo, escuro, com roupas largadas pelo chão, prato, talheres e copo numa mesinha em frente ao monitor de imagens. Não, não era o apartamento do amigo, ele era organizado, limpo, até demais, Roberto foi uma vez pegá-lo em casa, nem chegou a entrar, mas viu, pela porta aberta, um espaço minimalista, que cheirava a desinfetante. Nas imagens alguém, que ele só identificava a mão, pegava um telefone, discava um número e ficava ouvindo, a pessoa não falava nada, apenas ouvia por alguns instantes e então desligava. Roberto não teve dúvidas sobre o amigo, ele conseguiu descobrir pelo número discado, era o número de Homero. Roberto, o amigo de Roberto, eram quem ligava para Homero, quer dizer, sua essência era o fã secreto de Homero.
      Roberto teve acesso às memórias pessoais do amigo até o momento final, quando os registros mostravam a queda. Oficialmente eles demoravam para dar o veredito final, mas Roberto não tinha dúvidas, aquilo não era imaginação, o amigo havia se matado. Contudo, algo chamou a atenção de Roberto, a presença distorcida de memórias de relações sexuais, naqueles últimos momentos de vida, relações homossexuais. Nelas homens de tons de pele e de estaturas diferentes apareciam, mas os rostos eram sempre o mesmo, o dele, Roberto. Ficou claro para Roberto, que seu amigo mantinha uma paixão secreta por ele, parece que o mesmo ocorria com sua essência, em relação a Homero, entendeu isso pela imagem da ligação anônima.
   
      O tempo passou, Roberto desistiu de assistir os registros de sua essência. Com o tempo foi se aproximando de Roberta, eles passaram a ficar juntos, namoraram e finalmente começaram a morar no mesmo lugar. Era bom para os dois, deixaram seus antigos apartamentos e alugaram um maior, dividindo as despesas. Um dia, sozinho em casa, Roberta tinha saído para fazer um curso em outro estado, Roberto resolveu assistir as memórias de sua essência.
      - Ano quarenta e seis, mês dez, dia vinte e nove.
      - Devo usar as últimas preferências?
      - Nem me lembro mais quais eram.
      - Só registros de interações com outros seres, interações não profissionais.
      - Há, me lembrei, nada de solidão e trabalho, está ótimo, pode ser.
      Roberto viu as imagens daquele dia de sua essência, se existe destino, ele foi além dos três mil anos da história humana, perdurou até os dias daqueles seres cibernéticos. Não poderia serem mais significativas as imagens, foram poucas, mas suficientes, ele tinha que escolher justamente aquele dia para vê-las. Nos registros, Homero não estava mais sozinho, morava com Mônica, contudo, parece que a mulher sofria de alguma enfermidade, amnésia, sei lá, ou dificuldades visuais e auditivas. Homero chamava por ela, mas ela não respondia, dormia na mesma cama, mas nunca se comunicava com Homero. As imagens de Mônica nos registros eram confusas, Roberto não conseguia enxergar direito seu corpo, parecia um fantasma.
      Quando Roberta chegou em casa, Roberto perguntou a ela: "você tem visto os registros de sua essência?", "não", respondeu Roberta, "na verdade faz muito tempo, anos que não vejo, nunca fui de ficar assistindo esses registros, tenho na memória imagens da infância, e só".
      Roberto fez algo que nunca tinha feito, instalou um software secreto nos monitores, para gravar algum registro de essência de Roberta, caso ela os usasse para reproduzir as memórias de Mônica. Ele trabalhava na área e conhecia um hacker que vendia softwares ilegais, é preciso entender que isso era algo que não se fazia no mundo dos sósias cibernéticos, isso era bisbilhotar a intimidade mais secreta de um ser, havia leis que puniam severamente quem fizesse isso.
      Uma semana depois, numa noite que Roberta trabalhou até mais tarde, Roberto foi dar uma olhada no software pirata que havia instalado nos monitores, ela tinha checado por toda a semana, mas não havia achado nada. Naquela noite ele achou, eram imagens da noite anterior, depois que ele havia ido para a cama, Roberta ficou sozinha na sala e assistiu imagens de sua essência. Pronto, agora Roberto veria o ponto de vista, não de Homero, mas de Mônica, ele queria saber porque para Homero os registros de Mônica eram tão estranhos. Ele se arrependeria disso, melhor não ter invadido a privacidade alheia, ele não era Deus.
      Ele viu imagens do dia anterior, registros proibidos pela cultura do mundo dele, e pior ainda, registros de outra pessoa. Mônica era muito simpática, competente no que fazia, tanto tecnicamente quando socialmente, durante o dia, em seu trabalho, ela parecia ainda mais linda, mais iluminada, mesmo que estressada às vezes. Contudo, quando chegava em casa, o tom mudava, o laranja vivo dava lugar ao cinza, mas o que chamou a atenção de Roberto foi que à noite, Homero simplesmente não existia, Mônica estava sozinha no apartamento. Ele ainda olhou a data dos registros, era do dia anterior, e na noite passada ele estava lá no apartamento, com Roberta, tinham conversado, jantado juntos, assistido TV, contudo, nas memórias de Mônica, ela estava só, absolutamente só.
      Homero existia na vida de Mônica, quando ela foi tomar banho, por algum motivo, tirou a aliança da mão esquerda, Roberto deu pause na imagem, aumentou-a e fez a constatação, o nome de Homero estava gravado lá, portanto Mônica estava casada com Homero, sim havia uma coerência entre o mundo das essências e o mundo atual, como era de se esperar. Mas parece que isso era só no papel, não em seu coração, Mônica ainda não sabia da existência de Homero, mesmo cinco anos depois, mesmo morando junto com ele, ele não fazia parte de suas memórias, não significava nada para ela.
      Roberto teria que guardar essa dor com ele, não poderia revelá-la, se soubessem o que ele fez poderia ser processado e até preso. Ele tornou a fazer gravações proibidas, e novamente fez a constatação, de novo e de novo. Roberta, contudo, sempre tratava-o muito bem, com carinho, com cuidado, sempre foi assim, mas era isso que Roberto não entendia, como podemos ser alguém tão diferente daquilo que era sua essência? Como podia viver de uma forma, enquanto seu coração vivia de outra forma? Como sobreviveu com essa disparidade, essa incoerência, essa hipocrisia?
      Eles não ficaram juntos por muito mais tempo, Roberto pediu separação, coisa que Roberta não entendeu, não gostou, chorou muito. Isso só deixou Roberto mais confuso, mas ele foi firme, não poderia viver com alguém assim, dividida, que dizia uma coisa, mas sentia outra, bem, isso pelo menos foi o que Roberto entendeu de tudo o que tinha visto. Passaram-se mais uns quatro anos e Roberto resolveu dar uma olhada no dia de sua essência.
      - Ano cinquenta, mês sete, dia vinte e um.
      Homero estava sozinho, mais do que nunca, mas agora não ficava tão preso dentro do apartamento, saía quase todas as noites. Contudo, quando estava quase chegando à meia-noite, com Homero já em casa, tomando um copo de água gelada no escuro de sua sala, cercado de memórias, o telefone tocou. Ele atendeu, mas ninguém disse nada, insistiu, esperou, só silêncio. Roberto tinha certeza, em algum lugar, de alguma maneira, a essência do amigo Roberto que já não existia no novo mundo de sósias cibernéticas, ainda vivia, ainda amava, ainda mantinha uma esperança, de um dia ser amado por Homero, ou por Roberto 9.002.745.360.

      Quem somos afinal? Que obrigação temos de nos darmos totalmente a alguém? Que direito tem alguém de nos ter por inteiros? Temos capacidade de sermos inteiros? Incoerência existe? Talvez para quem está fora de nós, que nos vê. Aquilo que outros chamam de incoerências em nós, contudo, de traições, são maneiras que encontramos para sobreviver, para harmonizar os mistérios das almas de todos nós. Ninguém quer ser incoerente, mas cada verdade individual é construída com pequenas mentiras, ou melhor, com ilusões, suficientes para que provemos algum prazer. Sem prazer não se vive, física e emocionalmente, ele é necessário para que um dia termine e um novo dia comece. Agora a nossa essência, a verdade mais real sobre nossas identidades, essa só conheceremos quando toda a carne for descartada, e mesmo, quando todo implante, toda artificialidade, toda máscara, seja orgânica ou cibernética, for arrancada, deixando-nos totalmente nus.

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