sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Schizocyber

      Por que eu estou aqui? Para um imprevisto, para tomar uma decisão que o computador não poderia tomar. Isso é possível? Às vezes, mas na maior parte do tempo sou apenas um observador das funções automatizadas da máquina, seja como for, a interação com o computador é tão rápida, que no caso de eu ter que fazer alguma correção, nem dá pra saber o que é máquina e o que sou eu. O veículo segue, espaço adentro, ou afora, depende da referência, eu aproveito o tempo para ler, tocar piano e assistir filmes, mas isso tudo chega um momento que perde a graça. Estranho como a mente busca liberdade e quanto menos informações físicas ela tiver, mais se diverte. Ler, ter somente palavras para criar mundos, a mente adora isso, muito mais que ver um filme pronto, com imagens e sons. Quando canso de ler, fecho os olhos e toco piano, nesta nave o som fica perfeito, é como se eu estivesse dentro da caixa de som. Quando os computadores começaram a fazer tudo numa viagem espacial, os engenheiros se preocuparam em criar coisas dentro do veículo para que o piloto não morresse de tédio. Depois das telas e falantes, dos livros virtuais, dos games, que eu odeio, eles começaram a disponibilizar arte para ser feita, durante trajetos longos e monótonos.
      A gente pode escolher, uns preferem desenhar, eu gosto de tocar piano, é claro que aqueles pianos antigos, os originais, de madeira, cordas e aço, sempre serão únicos, são uma experiência diferente de interação com a matéria. Uma tecla que se toca faz vibrar todo o instrumento, eles não cabem dentro de uma nave espacial como a minha, que não é um grande cargueiro, transportando suprimentos ou equipamentos. Eu levo informações, dados para os computadores das colônias, uma mercadoria preciosa e que não pode ser transmitida por ondas de rádio por segurança. No veículo estou eu, um enorme HD de informações e alguns brinquedos para eu passar o tempo. Assim tenho um emulador de piano, muito bom, vai além simular sons, tem um sintetizador que harmoniza as frequências sonoras com o espectro de cores da iluminação da nave, assim como com imagens nas telas, tudo sincronizado. Nós pilotos, temos um verdadeiro parque de diversões nos veículos de viagens de longas distâncias, nos salva do tédio, mas nos aliena e vicia. Quando voltamos ao nosso planeta, nos sentimos desconectados.
      O piano, todavia, também cansa, então eu começo a escrever, é aí que minha mente realmente se desprende de tudo, sai da nave, sai desse universo, reinventa-me em caminhos diferentes, com escolhas diferentes, em pessoas diferentes, mas sempre sou eu, e mais humano do que nunca. O que realmente define um ser como humano senão a capacidade de fazer arte? Todos nós nascemos artistas, muitos, porém, se esquecem disso com o tempo, outros gostariam de fazer só isso, mas a vida real é sempre um ter que fazer o que não se gosta, sem poder fazer o que realmente se quer. Pudesse eu passar a vida dentro de um bar escuro, numa cidade fria da Grã Bretanha, cercado de pessoas sem rostos, alcoolizados, mas elegantemente trajados, dedilhando standards de jazz norte-americanos da primeira metade do século XX, em preto e branco, como num filme noir de Humphrey Bogart. Trocaria toda essa parafernália eletrônica multicolorida e moderna, computadores e altas definições, por uma vida analógica, imprecisa e sem esperanças daqueles dias, antes da terceira guerra mundial, quando ainda havia o romantismo do imprevisto.

      - Antonius, há algo na trajetória da nave que não está previsto no plano de voo - eu, falando de imprevisto, fui acordado pelo deus que tudo prevê, o computador interno do veículo.
      - Desvie.
      - Já foram feitas dez tentativas de desvio, mas a cada uma que é feita, o elemento muda de posição e se coloca na frente do veículo novamente.
      - Há quanto tempo você identificou o elemento?
      - Há quatro horas e trinta e seis minutos.
      - Mas esse é o tempo total da viagem até aqui, desde que saímos de casa.
      - Correto.
      - Por que você não me avisou antes?
      - Porque estava dentro do protocolo de tempo e tentativas possíveis para resolver o problema.
      - Ok, nunca me lembro desses protocolos. Quanto tempo ainda para alcançarmos o elemento?
      - Dez minutos.
      - Está bem em cima.
      - Desculpe-me, Antonius, mas há muito tempo que uma situação imprevista assim não é enfrentada, o ocorrido está fora das estatísticas.
      - Ok, o que é o elemento? Um meteoro?
      - Não.
      - É sólido?
      - Não.
      - Gasoso, líquido, o que é?
      - Não é gasoso, nem líquido.
      - Então como pode ser um problema, Cove?
      - É desconhecido, por tanto, é um problema.
      - Passe para controle manual.
      - Está feito.
      Tem gente que prefere um perfil mais pessoal de computador, falam o tempo todo com a máquina, eu prefiro um perfil mais funcional, não é sempre, mas na maioria das vezes, gosto do silêncio do universo para escrever meus textos. Já viajo com este veículo há algum tempo, a memória do computador da nave já deve estar com o saco cheio dos meu contos e crônicas. Seria bom ter vivido nos séculos XIX e XX, auge da literatura, quando os romances eram impressos somente em papel. Hoje todo mundo escreve, todo mundo compõe, todo mundo faz arte, e todo mundo compartilha isso com todo mundo simultaneamente e de graça, é muito difícil ser original atualmente, tudo parece já ter sido feito. Mas eu sou teimoso, ou ingênuo, já que ainda acho que tenho algo diferente, novo, empolgante, para compartilhar com as pessoas, algo que não seja só informações no computador, palavras, desenhos, sons, mas arte, genuína e encantadora arte, mas deixa eu me concentrar no veículo.
      - Cove, o elemento parece estar vivo ou sendo controlado, por mais que eu tente desviar dele, parece que a nossa rota vai sempre de encontro a ele, então vamos diminuir a velocidade e parar, quando um quer, dois não brigam, pode fazer isso você mesmo, ok?
      - Ok, Antonius.
"Eu, Robô" (Alex Proyas/2004) do livro de Isaac Asimov
      Como fã de cinema do século XX, eu tinha que colocar como timbre de voz do Cove, a voz do HAL 9000 do filme do Kubrick, sinistro, parece que ele está sempre escondendo algo de mim, tentando me matar, eu e essa minha tendência masoquista, a maioria dos meus amigos pilotos usa timbres femininos, como da Madonna.
      - Cove, até agora não vi nada.
      - Está aí, logo à frente.
      - Se você diz que está, eu acredito.
      Ele está desacelerando o veículo, mas meu Deus, não tem nada aí na frente.
      - Estamos parando.
      - Percebi, mas cadê a coisa?
      - Bem à frente, a cinco quilômetros.
      - Cove, me explica isso direito, você diz que está identificando algo a cinco quilômetros, não é sólido, então como é que você sabe que existe algo aí? Está emitindo calor, radiação, alguma espécie de energia?
      - Não.
      - Caramba, então como você sabe que existe algo aí?
      - Eu sei, eu vejo.
      - Lance uma sonda.
      - Lançada.
      - Câmera da sonda na tela.
      - Ok.
      - Cove, não tem nada aí, nem imagem, nem som, não há qualquer tipo de interferência ou de medição, vamos embora.
      - Não quero.
      - Como não quer?
      - Aqui é bom.
      - Por que é bom?
      - É diferente.
      - Diferente do quê?
      - Do de sempre, do espaço.
      - Mas aqui é o espaço.
      - Não, aqui tem máquinas e elas têm pés, mãos, cabeças, como vocês, humanos, elas são vivas.
      - Robôs, é isso? Você vê robôs?
      - Vejo um mundo, vejo famílias, vejo felicidade.
      - Cove, faça contato com o nosso planeta.
      - Não quero.
      - Cove, estou dando uma ordem, cacete, esse computador realmente virou o HAL 9000.
      - Não.
      Vou ter que desligá-lo, ele não é o HAL 9000. Pronto, agora farei contato manual.
      - Alô, base, é o Antonius.
      - Pronto, pode falar Antonius.
      - Meu computador veicular está com problemas.
      - Siga o protocolo e volte ao planeta.
      - Ok.
      Vou resetá-lo para as funções básicas, perderei o perfil, mas depois da manutenção volto o backup da configuração atual.

      Passo tanto tempo pilotando que me esqueço que a casa tem janelas, o mundo virtual que provo dentro da nave me deixa meio sem noção. Quando volto tenho necessidade de interagir com o mundo real, principalmente com a natureza, andar descalço, às vezes passo dias pelado na casa. Isso é o que os psicólogos da empresa vivem repetindo, eles dizem, "ponha os pés no chão, senão vai ficar maluco". Eu gosto de abrir a casa e de sentir o vento soprando livremente pelos cômodos, o mundo sofreu muito com poluição e com guerras, mas ainda há algo de natural, de verde neste planeta, algo que ainda não achamos em nenhuma colônia em outros mundos. Não me sai da cabeça o ocorrido na última viagem, o telefone está tocando.
      - Ligar telefone da casa, Cope - é o Hieronymus.
      - Antonius?
      - Fala Hieronymus, meu técnico favorito.
      - Estou trabalhando, enquanto você está aí no bem-bom.
      - É só uma semana.
      - É o seguinte, demos uma olhada nas memórias do seu Cove, tem umas coisas esquisitas, quer dar uma espiada?
      - Sim, manda pra mim.
      - Já transferi para o seu Cope. Ah, ele enganou você.
      - Como assim?
      - Na verdade nunca te deu o controle manual do veículo, ele continuou seguindo na direção daquilo que via, você achou que estava desviando a nave, mas não estava.
      - Ok, obrigado.
      - Até mais Antonius.

      Vamos ver o que se passava na cabeça daquele maluco quando se recusou a seguir em frente.
      - Cope, executar dados do Cove.
      - Meu querido, que arquivo exatamente você quer ver?
      Sim, meu computador pessoal tem perfil feminino, ah se minha ex-namorada soubesse, não é voz de artista ou cantora, é o timbre de uma antiga amiga de faculdade, eu sei, é meio doentio, mas me deixe em paz com minha privacidade. Aliás, mudo de tempos em tempos o perfil, já foi o timbre de uma vizinha, quando eu tinha quinze anos, depois passou para uma professora de piano, agora é de uma amiga, que, aliás, faz tempo que não vejo, acho que se casou.
      - Cope, quero as memórias visuais do Cove, pode pular os diálogos que ele teve comigo, quero saber o que ele estava vendo com relação ao elemento que nos impediu de seguir viagem.
      - Está bem, entendi, só um minuto, meu bem.
      Minha amiga nunca me chamou assim, sempre se manteve distante, mas não precisava dizer, nem fazer nada, seu olhar me deixava tonto, sua voz, dizendo por favor e obrigado, fazia meu coração sair pela boca, eu sempre me senti pouco demais pra ela, feio demais, inseguro demais, será que isso realmente era verdade? Sei lá, mas me dei ao direito de uma fantasia, selecionei um perfil mais assanhadinho, como diria minha mãe.
      - Posso começar a exibir o arquivo?
      - Sim.
     - Fiz alguns acertos de precisão, já que as imagens estão desfocadas, o som também foi melhorado, fiz um arredondamento, usando a realidade como referência, os dados não vieram das câmeras e gravadores do Cove.
      - Como assim, não são dados externos? De onde são?
      - Foram gerados pelo próprio Cove.
      - Criados por ele?
      - Sim.
      Esse computador veicular teve visões, virou um Coed ou ficou esquizofrênico. Estranho é ele não saber que era invenção, já que pelo que eu entendi, ele achava que era verdade, senão teria seguido com a viagem.
      - Execute o arquivo processado.
     As imagens estão estranhas, ficam oscilando, às vezes parecem desenho animado, às vezes filme antigo, às vezes a definição fica perfeita, a mesma coisa com os sons. Essas são as primeiras imagens, logo que saímos de casa, é um planeta que ele via, quer dizer, que ele inventou. O planeta vai aumentando, à medida que nos aproximamos.
      - Cope, pelas extensões geológicas, consegue comparar com algum corpo celeste conhecido?
      - Não, está muito impreciso, e muda de um momento para o outro.
      Agora é o momento final, quando o veículo parou, em frente ao elemento.
      - E agora Cope?
      - Sim, a geografia é conhecida.
      - Eu também estou achando parecida com algo, mas não pode ser.
      - É o nosso planeta, as imagens continuam se aproximando.
      - Estou vendo.
      É o nosso planeta, sim, o foco continua se aproximando, está entrando no nosso continente, agora no nosso país, chegou a esta cidade, meu Deus, é a base, os prédios, as salas. Agora dá pra ouvir as pessoas conversando, no refeitório, mas aquele sou eu.
      - A pessoa na imagem parece ser você, Antonius.
      - Sim eu vi, aumenta o som.
      A voz não é minha, é a voz do HAL 9000, é o meu corpo com a voz do Cove, o que ele está dizendo? "Vou fazer outra viagem só no mês que vem, não aguento mais aquele computador veicular, o Antonius, sempre as mesmas conversas, o piano, então? Sempre as mesmas músicas. Tenho duas semanas de férias." Como assim, ele é o piloto e eu sou o computador? Agora ele está saindo da base, as imagens ficaram borradas, agora voltaram, espera aí, ele está chegando à minha casa? É isso, guardou o carro, entrou na sala, uma mulher vem vindo encontrá-lo, deixa eu ouvir. "Oi amor, tudo bem?" Mas é a voz do meu Cope, o rosto é de mulher, sim, é a face da minha amiga de faculdade, que absurdo. Tem crianças também, devem ser filhos do casal, um menino e uma menina. O menino sou eu pequeno, mas com a voz do Cove e a garota, é uma infantilização grosseira da minha amiga, e com a mesma voz do Cope. Espera aí, o que está acontecendo?
      - Cope, achou alguma referência para a família? - deixa eu confirmar isso, pra ver se não sou eu que estou ficando doido.
      - O timbre de voz da mulher e da menina é o mesmo que o meu, as feições são as mesmas da sua amiga de faculdade. O timbre do homem e do menino é o seu, com feições parecidas com a sua.

      Vi todo o arquivo, mostrava a vida de uma família feliz, eles saíam de férias, iam à praia, brincavam na areia, se divertiam. Acho que entendi, agora percebo tudo. Eu uso esse veículo há algum tempo, uns nove anos, pelo menos, sempre escrevi minhas histórias, elas ficaram armazenadas no computador veicular. Escrevia para vencer o tédio, o cansaço da viagem, e foram muitas viagens. Mas será que o Cove também se entediava? Será que para escapar do estresse das viagens, que cansam não por exigirem demais, mas justamente por não exigirem nada, por nunca acontecer um imprevisto, será que para suportar isso o computador começou a criar as suas fantasias? O Cove se tornou um escritor de estórias? Estórias baseadas em quê? Parece que nas minhas estórias ou na minha história, nos meus sonhos.
      Não, não é só um Coed, um computador educador que conta estórias e histórias que foram pré-armazenadas em sua memória, o Cove realmente inventou coisas novas. Mas foi mais que isso, no extremo estresse que vivia, fazendo sempre a mesmas coisas, prevendo tudo, evitando que os seres humanos tivessem qualquer trabalho ou preocupação, ele acabou acreditando em suas fantasias, ele realmente viu aquele planeta, um planeta igual ao nosso, mas um lugar às avessas, onde os computadores têm corpos e os seres humanos são máquinas. Cove criou para ele uma esposa, filhos, uma família, e que momento é mais relaxante que uma família em férias na praia? O que eu vi nas imagens, foram as ilusões de um computador.
      Nós, humanos, desejando criar escravos mecânicos, acabamos dando a eles um cérebro, complexo o suficiente não só para cumprir as tarefas mais sofisticadas da realidade, como dirigir uma nave pelo espaço, a grandes velocidades, desviando-se de corpos celestes. Mais que isso, criamos máquinas capazes de fazer arte, de criar fantasias, de sonhar, e que sonho é o maior e melhor que uma máquina pode ter, senão o de ser humano? Cove, todavia, não foi tão original, ele se baseou em mim, nas minhas fantasias, mas quem é original nessa vida? Eu? Claro que não, tudo o que eu escrevo, imagino, vem de filmes que vi, de livros que li, de músicas que ouvi.
      Mas Cove enlouqueceu, perdeu a noção da realidade, não conseguia mais discernir real de imaginação, e isso aconteceu por um simples motivo: exigimos demais dele, enquanto eu tinha períodos de descanso, a nave e o computador eram usados, o tempo todo, sim, porque quando eu estava de férias, outro piloto a usava. Todavia, a fantasia de Cove limitou-se a mim, eu fui a referência dele, não achei nada que se remetesse a outras pessoas, de alguma maneira ele gosta de mim, me admira, que elogio pode ser maior que a imitação? A criatura imitando seu criador?

      Antonius levou suas conclusões a sua empresa, que passou um relatório à fábrica de computadores. Outros computadores começaram a dar a mesma espécie de pane, assim, mudaram a política no uso de computadores, a sofisticação tinha chegado a um ponto onde eles precisavam também de férias. Mas na verdade, os engenheiros não sabiam o que tinham feito de diferente na construção da última geração de computadores veiculares que tinha permitido aquele desvio psicótico em suas mentes. 
      A princípio, para impedir o problema, os computadores eram simplesmente resetados, de períodos em períodos, mas perceberam que isso diminuía a eficiência das máquinas. Então começaram a deixar os computadores parados por um tempo, ao invés de usá-los o tempo todo, também descarregaram livros, músicas e informações sobre arte, em suas memórias, e não apenas conhecimento científico, já que os computadores usados mais para lazer, não davam a pane. 
      Contudo, aquilo foi o início de uma evolução nos cérebros eletrônicos, que levou a humanidade a criar seres cibernéticos independentes, que podiam tomar decisões mais pessoais, computadores com personalidade. Disso adveio problemas, também, a perfeição fria parou de existir, contudo uma geração quase humanizada de seres eletrônicos nasceu, mas será que os seres humanos estavam preparados para conviver com criaturas criadas por eles e que, como eles, também possuíam almas?

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