sábado, 20 de fevereiro de 2016

O sentido da vida

      - Qual o sentido de tudo isso, por que estamos aqui, onde isso vai dar?

      Um homem cansado da vida, desanimado de tudo, procurou um sábio e desabafou, o sábio, que conhecia todos os caminhos e todas as verdades, pôs-se a falar com ele.

      - A vida é assim, deserto e pedras, mas lá no alto daquela montanha existe um jardim, repleto de árvores frutíferas, no meio dele passa um rio, de águas calmas, limpas e frescas. Lá se colhe o alimento com as mãos, se bebe a mais pura das águas sem esforço, e se tem tempo para meditar, fazer poesia e amar.
      - Não aguento mais este lugar seco, tudo é enfado e sem gosto, o amor das mulheres é difícil e sem graça, a amizade dos homens é falsa, temos que plantar e esperar meses para colher grãos que duram alguns meses, pra depois começarmos tudo de novo. A água é pouca e amarga, retirada do fundo da terra com muita lida, os poços secam em pouco tempo, novos têm que ser cavados, com frequência, num trabalho sem fim.
      - Esse é o preço que pagamos por desobedecer ao senhor da terra.
      - Desobedecer? A única coisa que fizemos foi querer saber, nossos pais enjoaram de viver dentro do castelo do senhor, queriam conhecer o resto do mundo. Lá éramos alimentados, sim, de fato, mas ninguém sabia de onde vinham água e comida, nos eram trazidos por uns poucos escolhidos, únicos que tinham conhecimento do jardim da montanha, uma elite sacerdotal. Mas quem pode calar a curiosidade humana?
      - A curiosidade tem seu preço, queríamos conhecer o mundo? Pois bem, o senhor nos deixou partir, mas agora é cada um por si, o jardim permanece lá em cima, proibido a todos nós.
      - Muita gente já tentou chegar até lá, mas a montanha não pode ser escalada, então ficamos todos aqui, olhando-a.
      - É preciso ter fé, a montanha vai nos ouvir e nos deixar subir, salve a montanha.
      - A montanha é terra e pedra, não pode nos ouvir.
      - Sob ela está o paraíso, através dela flui a energia da terra, nela os deuses do universo tocaram com os pés este mundo, milhares de anos atrás, e deixaram sua provisão de vida e de conhecimento aos homens.
      - Não acredito nisso, o senhor da terra é a quem devemos rogar por misericórdia, ele é o dono de tudo.
      - O senhor da terra não é visto desde que os homens saíram de seu castelo, alguns dizem que ele já morreu, outros acreditam até que ele nunca existiu. Sempre fomos párias, seres errantes e solitários, vagando por esse deserto sem fim. Os de espiritualidade superior, e conhecedores dos mistérios, dizem que o jardim é a essência da montanha, nele reside o poder de sustentar todas as coisas, ele é deus, casada com a deusa terra, na montanha só acreditam os iniciados e de pouco conhecimento.
      - Vou até o castelo, vou procurar o senhor, ele me ouvirá, ele pode me mostrar como subir a montanha.
      - Alguns creem que o castelo é um lugar mágico, sua construção encerra os segredos do cosmo, o formato circular dos muralhas, a torre triangular, mas dizem que existe um polígono de cinco lados no subterrâneo do castelo que cria e sustenta as almas de todos os homens.
      - Não acredito nisso, o castelo é terra é pedra, não existe nenhum mistério por lá, o senhor da terra é o sustentador de tudo, criador de todas as coisas, vou falar com ele.
      - Você vai numa empreitada que muitos foram e desistiram, outros morreram tentando, tantos só perderam tempo e não conseguiram nada, ficaram ainda mais céticos.
      - Eu vejo o castelo, vou em direção a ele.
      - Todos veem, mas chegar até ele é que é a questão.
      - Vou conseguir.

      O homem não entendeu o sábio, não ficou claro se ele queria ajudá-lo ou não, se sabia de algo e queria ensiná-lo, se sabia mas escondia algo, se não sabia, mas inventava um monte de coisas, para não perder seu status de sábio. Mas ele estava decidido, iria até o castelo falar com o senhor da terra. O homem deixou sua família com alguma provisão de comida e água e foi, caminhou por dias, sozinho, dias quentes e noites frias e ele ainda tinha os olhos fixos no castelo do senhor da terra, gigantesco, que podia ser visto por todos, só era menor que a montanha com o jardim, que ficava bem atrás do castelo. Contudo, em um determinado momento, o homem se cansou, achou uma árvore, sentou-se, encostou-se no tronco dela e adormeceu, então teve um sonho.
      Ele via um mercado, diversos vendedores, cada um querendo falar mais alto que o outro anunciando seu produto. Eles vendiam, todos, frutos parecidos com tomates, contudo, não tinham a cor do tomate. Havia azuis, verdes e até pretos, em tons variados, tinha até alguns com cores parecidas com o vermelho do tomate original, rosa, violeta, mas nunca exatamente igual. Ele caminhava pelo mercado e ficava encantado com a maneira como os vendedores ofereciam os frutos, alguns eram mais sérios, buscando em argumentos científicos vantagens para seus produtos, outros mais carismáticos, argumentavam que seus frutos eram mais saborosos, mais bonitos. Seduzido pelos vendedores, ele comprou, um fruto de cada, então sentou-se num lugar, fora da cidade, e pegou um dos frutos para comer, ele estava com muita fome. Quando tocou no fruto, suas mãos ficaram sujas de tinta, o tomate azul, não era azul, era pintado de azul, mas na verdade nem era tomate, era uma pedra, trabalhada por escultores, fria e dura, não podia servir de alimento. Então, ele tomou outro fruto, o mesmo ocorria, uma tinta verde, negra ou rosa, sujava suas mãos e por baixo das tintas, pedaços de pedra, torneadas por algum escultor habilidoso, mas que não podiam alimentar o homem em sua fome.
      Revoltado com os embustes, ele jogou os frutos de pedra longe, quando as pedras caíram ao chão, elas se quebraram. De dentro das pedras saíram pequenos repteis, pareciam cobras, mas tinham pés e cabeças adornadas com penas coloridas. Os tais animais falavam, tinha sabedoria, tinham astúcia, um falava da montanha, outro do jardim, outro ainda do castelo, nenhum deles falava do senhor da terra. Por alguns momentos ele ficou hipnotizado pela beleza dos animais e por suas palavras, e entorpecido por tantas verdades e mistérios, assim ele se pôs de pé e começou a caminhar. Andou em direção ao lado oposto da montanha, foi até o fim do mundo, próximo ao abismo, quando quase dava o último passo, que o lançaria para fora do mundo, uma mão tocou seu ombro e ele foi acordado do torpor. O homem olhou para trás e viu, uma luz muito forte, não conseguia discernir o rosto de quem era, mas ouviu uma voz que dizia: "não busque na criatura o que só o criador pode dar". Ele acordou de seu sonho, era de manhã, uma brisa revigorante bateu em seu rosto, e no chão, havia um vasilhame com água e três frutos, tomates verdadeiros, vermelhos e frescos, ele comeu um dos tomates, bebeu um gole da água e continuou sua viagem.

      Ele andou mais um pouco, o castelo estava ficando maior, então viu, entre ele e seu destino, alguém que vinha em sua direção. À medida que foi se aproximando, foi entendendo quem era, era humano, uns trinta e poucos anos, todo de branco, cabelos loiros e muito alto. A princípio ficou com medo, mas continuou andando. O gigante então parou, a uns dez metros dele, ele também parou.
      - Sei o que você procura - disse o gigante.
      - Sabe?
      - Eu tenho o caminho para o jardim.
      - Eu procuro o senhor da terra.
      - Mas você deseja que ele te mostre como chegar ao jardim.
      - Sim, antes tenho que subir a montanha.
      - Você não precisa subir a montanha para chegar ao jardim.
      - Não?
      - Não, siga-me.
      O gigante não se afastou do castelo, mas também não se aproximou, ele foi pela esquerda e seguiu dando volta pelo castelo, manteve-se na mesma distância do castelo, mas andando em círculo. O homem seguiu o gigante, mas com os olhos fixos no castelo, ele pensou, "estou tão cansado que nem me importo com a ajuda, o importante é que estou vendo o castelo, não o perderei de vista, ele é o meu destino". À medida que caminhava, pela esquerda, o homem foi ficando mais e mais cansado, ele não se afastava de seu objetivo, mas também não se aproximava dele, contudo, naquela circunferência infinita, quanto mais caminhava, menos se movia, e mais atordoado ficava. Então ele parou e gritou ao gigante:
      - Quem é você?
      - Um guardião - disse o gigante com em um tom de voz calmo e seguro.
      - Guardião do quê?
      - Do castelo.
      - Por que o castelo precisa de guardião?
      - Vamos continuar, já estamos chegando.
      - Não estamos não, a não ser por alguns metros, parece que não saímos do lugar.
      - Vamos continuar, você não está vendo o castelo?
      - Estou.
      - Isso não basta?
      - Não, quero chegar até ele, não somente ficar olhando.
      - Sabe que ninguém chegou tão perto como você chegou?
      - É verdade?
      - Sim.
      - Sigamos em frente.
      - Não, não posso - algo estava errado, o homem não estava em paz, então, como que num piscar de olhos, o gigante, que até então se mantinha longe do homem, se aproximou, bem perto. O homem viu o gigante abaixado, com as mãos no final de longos braços sobre seus ombros, com os olhos, enormes olhos, olhando para ele. Aterrorizado, o homem percebeu, que apesar de parecer um ser de luz, visto suas roupas e cabelos brilharem mais que o sol, seus olhos eram negros, nem tinham as partes brancas, eram totalmente escuros. O homem também percebeu uma coisa, a face do gigante, mesmo no meio dos longos cabelos claros, e sem sinais de expressão, era a sua própria face.
      - Agora é tarde, terá que me seguir - disse o gigante, dessa vez com um tom de voz diferente, havia algo de ruim e violento em suas palavras.
      - Quem é você?
      - Já disse, um guardião - o gigante parece que estava perdendo a paciência, suas roupas agora não eram tão alvas, acinzentavam-se, assim como seus cabelos.
      - O senhor da terra não precisa de guardiões.
      - Eu não protejo o castelo.
      - O que você protege, então?
      - O conhecimento.
      - Que conhecimento?
      - Vocês homens são patéticos, e absolutamente não se conhecem, - agora não era mais um homem alto que falava, mas um deus - primeiro vocês querem saber, coisas que aos encarnados é proibido saber. Vocês se rebelam, traem aquele que lhes dá sustento, em troca do quê? De conhecimento, conhecimento que nós lhes oferecemos de graça. Então, depois de ganharem liberdade, vocês querem voltar à prisão? Vivam a vida, usufruam da liberdade, usufruam do conhecimento. A vida parece dura? Usem o que sabem para saberem mais, mudem o mundo, dominem o planeta, depois o universo, sejam deuses.
      - Não entendo o que você fala, mas suas palavras não me fazem bem.
      - Agora não fazem, mas já fizeram.
      - Não gosto de você.
      - Não gosta? Você o trocou por nós, desde então nos adoram.
      - Vou voltar ao meu caminho, segui você não está me levando a lugar algum.
      O guardião se enfureceu, agora era um gigante todo negro, e seus olhos, que eram negros, agora se tornaram vermelhos, ele gritou e os céus se fecharam, raios riscaram o firmamento e trovões muito fortes abalaram a terra. O homem simplesmente virou as costas e se foi.
      - Volte aqui, - gritava o gigante enfurecido - você não pode nada sem nós.
      Por um instante o homem virou-se e viu, no céu, agora não era um, mas quatro, quatro seres negros, que se afastavam como se estivessem sendo sugados por uma força maior, eles se debatiam, como que sentindo muita dor, mas o homem continuou, voltou ao ponto onde tinha visto o gigante a princípio. Então ele se sentou, exausto, e fez algo que nunca havia feito, falou com o senhor da terra, falou em seu coração, sem vê-lo, mas crendo em sua existência: "se o senhor existe de fato, me leve até o castelo, por favor". O homem respirou fundo, comeu o segundo dos três frutos que tinha, bebeu mais um gole d´água, pôs-se de pé e continuou, em linha reta em direção ao castelo.

      Não lhe restavam mais forças, não lhe restava mais esperança, não lhe restavam mais qualquer ilusão ou gratificação internas que lhe dessem energia para seguir, mas ele seguiu, com uma pequena, quase insignificante porção de fé. Não, não era por que ele acreditava em si mesmo, não era porque tinha algum mérito espiritual pessoal, não, ele tinha em mente o senhor da terra, aquilo que sua consciência humana, aquilo que sua história tinha forjado dentro dele como sendo o criador de todas as coisas. Sua fé era pequena, mas enfim, era genuína, não havia vaidade, conveniência ou qualquer desejo de barganha, de querer dar algo ao senhor da terra para que ganhasse outra coisa, ele apenas cria que poderia achar o criador de todas as coisas e pedir a ele por misericórdia.
     Então, ele se viu, de frente ao castelo, nunca ninguém havia chegado até aquele ponto, as majestosas portas do castelo, ele era lindo. Construído de pedras brancas, todas do mesmo tamanho, os muros não eram em formato circular, como muitos diziam, a construção externa era um retângulo, com os lados maiores na frente e atrás. O homem não entendeu, mas as portas estavam abertas, ele então entrou. Dentro dos muros havia uma construção quadrada, e sobre o grande cubo, uma torre, cilíndrica que subia acima dos muros, também não havia nenhuma parte em formato triangular, ou piramidal, sobre a torre, como alguns acreditavam. Na verdade, nada do que diziam, era verdade, símbolos com significados secretos, imagens ou esculturas de animais míticos, não, era tudo muito simples, simples até demais.
      O homem andou ao redor do cubo, parecia ser um salão com uma parte térrea e um andar superior, sendo que havia uma larga janela em cada lado, ao que ele entendeu, no andar superior do cubo. Só havia uma porta, pequena, no lado da frente, a torre cilíndrica tinha a mesma medida até o alto, onde parecia existir um terraço aberto, com quatro aberturas. O homem voltou à porta do cubo e entrou no salão, estava escuro, mas havia tochas apagadas nas paredes, ele riscou duas pederneiras que tinha e acendeu as tochas, uma a uma, até que todo o lugar ficou iluminado. Ele ficou maravilhado com o que viu, toda a sala era uma enorme biblioteca, com prateleiras em todas as paredes, repletas de livros, contudo, havia somente duas cadeiras, uma à esquerda e outra à direita. No centro da sala uma escada em espiral dava acesso ao andar superior.
       Ele correu para as prateleiras, queria saber o que eram aqueles livros. O homem perdeu a noção do tempo, mesmo porque lá dentro o tempo não existia, mas ele abriu um livro após outro, não deu tempo de ler nada por inteiro, mas o que ele queria saber era do que se tratavam os livros, que assuntos estavam registrados neles. Havia de tudo, história natural, com descrições detalhadas sobre animais, sejam da água, da terra e do céu, com desenhos e extremamente bem feitos, tanto sobre o exterior quanto do interior, da mesma maneira havia catálogos da vida vegetal, plantas, árvores, ervas, comestíveis ou não, tudo com desenhos minuciosamente produzidos e coloridos. Havia também livros de engenharia, esquemas de máquinas para levar água dos rios para as cidades, projetos de encanamento e saneamento urbanos, tratados sobre higiene, iluminação com óleos combustíveis refinados de um líquido preto que vertia em algumas regiões, e que ele não conhecia. Mas tinha mais, máquinas de tecelagem, descrição de processo de curtição de couro, até receitas de remédios produzidos de plantas e minerais.
      Contudo, o homem não encontrou o senhor da terra, o lugar estava vazio, então ele pensou, deve estar no andar superior. Subitamente largou os livros e correu para a escada, no centro da biblioteca. Pegou uma das tochas e voou pelas escadas, o andar superior era mais iluminado, as janelas deixavam que a luz solar entrasse no ambiente. Contudo, esse andar estava vazio, não havia nada nele, nem livros, nem móveis, nem tochas havia nas paredes, apenas no centro, a escada circular que seguia, pela torre acima do grande cubo. O homem foi até a janela da frente, dava para ver fora do castelo, um deserto sem fim, lá na frente, estava sua cidade, ele sentiu saudades da mulher e do filho, ele sentiu saudade de sua vida comum, simples, do seu dia a dia, ele sentiu saudades de ser só um homem, não um viajante solitário, procurando pelo criador de todas as coisas. Ele permaneceu na janela até o entardecer e viu o por do sol mais belo que já havia visto. Daquele lugar, exatamente naquele ponto, na janela da frente do andar superior, sob as muralhas, ele se sentiu parte de algo maior, sentiu que algo muito especial estava acontecendo, e se perguntou: "por que comigo, quem sou eu para merecer tudo isso? Não sou melhor que nenhum outro homem".

      Então ele se voltou, e com a tocha na mão começou a subir a escada da torre. "Lá em cima, será? Será que o senhor da terra está lá?" Ele se perguntava, mas não tinha pressa, não mais, degrau por degrau pisou lentamente, como se a cada passo que subisse, ele confessasse seus erros, seus males, seus egoísmos, suas ingratidões, sua incredulidade, sua humanidade, mas ele não se arrependia só por ele, mas por todos os homens. Ele lembrou das palavras do sábio, agora ele sabia, era um falso sábio, ele se lembrou do sonhos, das bestas que saíram das pedras, ele se lembrou das palavras que o motivaram a seguir, "não busque na criatura o que só o criador pode dar". Ele se lembrou do gigante, dos guardiões não do conhecimento, mas da mentira, já que o homem, como muitos maldosamente diziam, não estava preso no início num lugar sem conhecimento, mas naquela biblioteca havia todo o tipo de ciência. O que mais o homem queria saber, por que tinha se rebelado contra o senhor da terra, o que o homem tinha visto de tão interessante na proposta de conhecimento dos gigantes?
      Finalmente ele chegou, se desse mais um passo sua cabeça estaria fora da parte fechada da torre e alcançaria o topo, a parte aberta, o lugar mais alto do castelo, onde deveria estar a resposta de sua pergunta sobre o sentido da vida, o próprio senhor da terra. Ele parou, abaixou a cabeça, fechou os olhos, curiosamente a tocha se apagou, agora ele estava absolutamente sozinho, num silêncio que chegava a machucar seus ouvidos, como se não existisse no mundo mais ninguém além dele.
     Ele deu um passo, já podia ver o chão do topo da torre, estava claro, iluminado por um céu absurdamente ponteado de estrelas e da maior lua que ele já havia visto, olhou, olhou, e não viu ninguém. Triste ele terminou de subir, caminhou pelo lugar, de lá dava pra ver todo o planeta, a montanha estava atrás. Debruçou numa das aberturas, na outra, na outra então foi para a frente. Ficou algum tempo ali, parado, contemplando a terra, o céu, a si mesmo, ele esvaziou-se, mais ainda, não havia mais nada a dizer: o senhor da terra não existia, era tudo uma grande fantasia, algo em que as pessoas acreditavam para continuarem vivendo, algo que muitos vendiam, para se aproveitar da fé alheia. Mas as coisas não batiam, não podia ser isso, ele tinha tido experiências sobrenaturais durante seu trajeto até o castelo, o sonho, o gigante, não, havia algo, algo que ele ainda não tinha entendido.
      O homem foi para o centro do lugar, sentou-se no buraco circular que dava acesso à escada, não queria olhar mais para cima, não existia nada lá em cima. A montanha? Era mais uma ilusão. O jardim devia estar abandonado, morto, seco, como tudo no mundo. Com os olhos fechados e com as mãos na cabeça, ele chorou, amargamente, chorou lágrimas que nem existiam mais, subiram de um coração ressecado com tanta decepção. Então, leve, ele abriu os olhos, a luz do luar batia bem no primeiro degrau da escada, assim ele viu, escrito no degrau, uma frase: "amarás a Deus acima de todas as coisas". Ele se assustou, mas baixou a visão e olhou o próximo degrau, estava escrito, "amarás ao próximo como a ti mesmo", o que estava acontecendo? Ele havia subido a escada, tão ocupado em achar algo dentro de si que não tinha visto, ele olhou o terceiro degrau e também havia algo escrito. A tocha que havia se apagado estava lá, com as pederneiras ele tornou a acendê-la e viu, em cada degrau havia algo escrito.
      O homem desceu a escada, eram cento e quarenta e quatro degraus, voltou ao térreo e procurou, procurou, queria papel para anotar as frases dos degraus, mas não achava nada em branco, eram livros e todos estavam preenchidos com textos. Então ele foi até a porta e achou, logo a esquerda, na primeira posição da prateleira mais baixa, um livro, diferente de todos os outros, ele estava com as páginas em branco. Juntos, amarrados ao livro com barbante, lápis de carvão, sete deles, alguém, de alguma maneira havia previsto aquela situação, tinha deixado para ele material para que registrasse o texto escrito nos degraus. Ele o fez, subiu novamente e começou a anotar, a partir do degrau mais alto, uma frase em cada página do livro, o livro tinha exatamente cento e quarenta e quatro páginas. Quando o homem acabou, estava cansado, lhe restava um último fruto vermelho, ele o comeu e bebeu o restante da água que tinha, assim adormeceu.

      O sol o acordou, entrando pelas portas do castelo, passando pela porta da biblioteca e atingindo seu rosto, ele precisava voltar. Ele se levantou, saiu da sala quadrada, passou pelas portas da muralha e antes de seguir, parou e olhou o castelo, queria vê-lo pela última vez. Foi exatamente isso que ocorreu, já que começando pelo topo da torre, a construção começou a ruir, a terra se abriu e engoliu tudo, a torre, a edificação quadrada e os muros. Quando o pó se assentou havia uma planície, nem uma pedra tinha ficado na superfície, tudo tinha sido engolido pela terra. Ele pegou o livro da mão e sorriu, aquelas cento e quarenta e quatro frases eram tudo o que havia restado do lugar onde os primeiros homens e o senhor da terra tinham pisado.
      A viagem de volta foi rápida, o caminho parecia menor, o sol ainda não havia se posto e ele já enxergava sua cidade, então ele parou, num pequeno monte, alguns quilômetros antes de chegar. Enquanto olhava o povo lá embaixo, arando a terral, cuidando da criação, vivendo sua vida normal, ele tentava entender o que havia ocorrido. Ouviu então, claramente, como sua própria voz, o senhor da terra falar com ele.
      - Filho.
      - Deus?
      - Sim, esse sou eu - pelo primeira vez ele chamou o senhor da terra de Deus.
      - O senhor da terra, criador de todas as coisas?
      - O único Deus.
      - Não te achei no castelo, também não subi à montanha, o jardim existe?
      - Existe.
      - Lá em cima?
      - Não, na sua frente.
      - Na minha frente tem a minha cidade, minha pobre cidade.
      - Sim.
      - Ela é o jardim?
      - Pode se tornar um.
      - Como?
      - Você tem um livro com cento e quarenta e quatro princípios, não, não se prenda a eles como leis, como regras rígidas que devem ser seguidas e cuja desobediência é sujeita à severa punição. Eles são princípios, que só serão realmente conhecidos, se depois de plantados nos corações das pessoas, derem frutos. Podem ser questionados, mas se isso for feito com sinceridade e respeito, serão entendidos ainda com mais profundidade, eles são o começo, não o fim, e levarão os homens que os viverem a transformar desertos em jardins.
      - Mas e o jardim original?
      - Aquele foi outro tempo, os homens fizeram escolhas, as coisas mudaram.
      - Então o Senhor vai nos punir?
      - Não, vocês se puniram, mas novas oportunidades sempre existem, se houver boa vontade, o livro que você escreveu é a porta para uma nova chance, para um novo jardim.
      - E todo aquele conhecimento que havia nos livros? Tudo se perdeu...
      - Não, toda aquela ciência está aí, dentro de cada homem e mulher de sua cidade, com tempo tudo aquilo será conhecido por vocês, e usado da melhor maneira para conquistar o mundo e o universo. O conhecimento nunca foi dos guardiões, eles foram usados para confrontar o homem com suas dúvidas, com seus valores, para que ele pudesse usar seu livre arbítrio.
      - Não posso fazer isso sozinho, ninguém vai acreditar em mim.
      - Eu estou contigo e vou te ajudar, mas não tente convencer ninguém com argumentos, viva os princípios do livro, ensine-os para sua esposa e seu filho, depois para seus parentes e amigos, sempre dando exemplo de prática maior que palavras ou teorias. O que você vai experimentar desse livro é maior que você, tem vida própria, te conduzirá para os melhores caminhos, em cada escolha que tiver que fazer, confie e fique em paz.

       Assim foi, na cidade do homem, o deserto se tornou jardim, contudo, não foram todos que acreditaram no livro, não foram todos que entenderam que o senhor da terra é Deus e que agora não anda mais fisicamente entre os homens, mas que é espírito e como tal mora no coração dos homens que permitem que isso aconteça. Alguns disseram que o homem tinha andado tempo demais pelo deserto, que o calor tinha torrado seus miolos, que ele estava louco e tinha inventado toda aquela história. Outros, com o tempo, até provaram os jardins, mas que depois se tornaram novamente em desertos, muitos fizeram guerras contra as cidades-jardins, e outros continuaram acreditando nos significados místicos do castelo, nas recompensas espirituais que obtinham os que se sacrificassem subindo a montanha, na crença espiritual de um jardim original e nos guardiões do conhecimento, como verdadeiros mensageiros da verdade. Mas enfim, o homem seguiu, com livre arbítrio, mas agora com o livro sagrado em suas mãos, o livro dos cento e quarenta e quatro degraus que um primeiro homem teve a coragem de escrever, depois de viajar sozinho e lutar contra si mesmo e contra os gigantes num deserto sem fim.

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