domingo, 27 de março de 2016

Paraná

       Debaixo do mar, o céu azul daquela tarde de inverno tirava meus pés do chão, meus problemas levitavam e diluíam-se naquela neblina salgada. Por pouco meu espírito não desencarnava e tomava outro corpo. A praia estava vazia, quem vem ao litoral no frio? Não a maioria dos brasileiros, viciados no verão, no carnaval e na cerveja gelada. Eu sempre preferi o vinho seco na temperatura ambiente de noites de inverno, comprime meu alma ao mesmo tempo que esvazia as ruas deixando-me protegido das pessoas. Mas não comprime pra me sufocar, torna-me coeso, as ideias se conectam, os sentimentos se entendem e acho a poesia, pão da vida para meu espírito tão angustiado. A praia molhada após uma chuva de inverno, me livra do desconforto da areia invadindo meu corpo. Não é Brasil quando o litoral está frio e chuvoso, e eu que sempre me senti habitante do norte da linha do equador trazido contra a força para o sul, me acho em meu país de origem, sinto-me mais perto de casa.
      Minha mãe acordava cedo, desde hoje até antes do meu nascimento é assim. Meu pai saía e se protegia no conforto de um escritório, com o luxo de uma garrafa térmica com café sempre novo, as conversas frívolas de amigos e os papeis obsessivamente arrumados sobre a mesa. Minha mãe fugia de si mesma no ofício pesado de dona de casa dos anos cinquenta deste país. Puxar aquela água congelada de poço naquela cidade do norte do Paraná em plena estação mais fria do ano, não era trabalho para uma dama, não para uma dama esposa de homem de escritório. As camisas sociais brancas de algodão deixadas na noite passada no tanque, faziam parte de um bloco sólido de gelo que precisaria de algum tempo debaixo do Sol para terminarem de ser lavadas. O bebê chorava enquanto vigiava o leite na vasilha sobre as brasas do fogão à lenha. A mulher corria com o balde de água na mão para chegar à cozinha antes que o leite subisse. O bebê não chora mais, desistiu. Naquele fim de mundo não havia mar azul, só terra vermelha que encardia até a alma, mas era boa pro café.
      Preciso andar, devagar, o Sol está quase sumindo no horizonte, como meu desejo. Houve momentos que quem mandava em mim era o desejo, eu não tinha controle sobre ele. Aquele que carrega uma ferida enorme e aberta no peito, desde a infância, quando descobre o sexo, vicia-se nele. Na minha juventude, eu ainda não havia me rendido ao doce torpor do álcool, preservei meu fígado, mas castiguei outros membros. Maconha, cocaína nunca me encantaram, assim como adquiri nojo de prostitutas, após usá-las poucas vezes, também tinha aversão a injetar dentro do meu corpo uma fumaça ou um pó, os quais eu não sabia bem o que eram. Mas eu não queria só prazer, queria me apaixonar, totalmente, por alguém que me desse seu corpo, mas que tivesse uma mente inteligente e uma alma de artista. Nunca tive paciência com mulheres burras e que só possuem beleza física como argumento de presença social. Agora, o Sol se põe, a paixão se apaga, sim, numa dessas esquinas do mundo, numa noite mágica, a vida ainda pode me surpreender, eu acredito nisso. Então, sem que eu esteja esperando, ela aparece, não mais uma menina, não mais inexperiente, mas madura, com o corpo envelhecido pelo mundo, mas ainda assim com um coração ardente, ávido por compartilhar a si e aos seus sonhos comigo.
      No Paraná, o Sol nunca se punha, porque ele nunca nascia, parecia seis horas da tarde, o dia todo. Dentro da casa, era sempre meia-noite e os monstros andavam por ela, observavam-me no escuro, à porta de meu quarto, enquanto eu tentava dormir. Mesmo pesado de cansado, não podia fechar os olhos, se eu os fechasse, o homem sem rosto sairia de sua vigília encostado à porta, e viria até a minha cama. O que ele faria? Violentaria minha mãe, que dormia comigo no escuro daquela casa infestada de camundongos, com as vigas de madeira sobre minha cabeça gemendo. A casa parecia ter vida própria, era a quarta entidade que vivia comigo. Lá fora, o vento gelado surrava as paredes de madeira, entrava pelas frestas, talvez fosse melhor dormir ao relento, na grama ao redor da casa, seria menos assustador que lá dentro. Mas eu tinha meu amigo invisível, ou melhor, minha amiga, era pequena, parecia a fadinha do Peter Pan. No centro espírita, as pessoas diziam que não era um produto de minha imaginação, mas um espírito humano desencarnado tentando se comunicar comigo. Os espíritas sempre dizem que eu tenho mediunidade, hoje meu psiquiatra chama isso de esquizofrenia, trezentas miligramas de quetiapina dão conta dos meus fantasmas, que agora não são mais fadinhas do Peter Pan, mas esboços preservados em minha mente daquilo que eu ainda acho que são meus pais. Pobres diabos, no fundo nunca quiseram ser tão ruins, faziam o que podiam, faltavam-lhes referências? Sim, no início, mas depois continuaram desprezando aquelas que a vida lhes deu, para eles sempre pareceu mais fácil sofrer que ser feliz. Passaram a vida inventando dores.
     Estou cansado, melhor voltar daqui, vou pela calçada, já está escurecendo. Praia no frio fica incoerente, sempre que vejo filmes europeus, onde as pessoas caminham à beira-mar agasalhadas, de botas, me parece estranho. Talvez seja exatamente por isso que eu gosto tanto disso, é anormal, combina comigo, louco de pedra. O vento me alivia, as vozes de fora se calam, ficam só as de dentro, essas são mais generosas, essas me inspiram. Quando eu chegar ao quarto vou escrever, mas não quero voltar logo pra lá, está bom aqui. Casais de velhinhos, magros, saudáveis, não têm hora nem clima pra eles fazerem suas caminhadas, parecem nem sentir frio, mesmo agora, estão andando pela calçada, num ritmo disciplinado. Que pressa têm eles, a essa altura do campeonato? Está aí algo com que nunca me preocupei, minha saúde física, fazer exercícios, frequentar academia, isso nunca me atraiu, mesmo que eu goste bastante de andar a pé. Prefiro me ocupar com a alma e com o espírito, eu queria ser isso, alma e espírito, mais nada. Flutuar por aí como um voyeur, não me entenda mal, não quero espionar os outros transando, não mais, quero espiar as conversas, as conquistas, os romances. Quero ver o que ela faz quando ele não está olhando, como ele olha para ela, por trás, quando ela sai da mesa para ir ao toalete se maquiar. Quero ver o sorriso dela olhando para o bumbum dele, quando ele se levanta para ir ao banheiro. Ok, confesso, posso espiar um pouco as intenções sexuais das pessoas, mas nada explícito, quando entrarem no quarto ou alguma parte mais íntima do corpo, dele ou dela, aparecer, vou embora, Que covardia a minha, ser apenas um observador, tentar abster-me de viver, para quê? Para alegar inocência? Culpa, isso é o que eu carrego, culpa que nem minha é.
      Meu pai sempre foi um curioso das coisas espirituais, pena que ele só levou seus questionamentos para o capeta. Mesmo que procurasse sinceramente pelo bem, seu espírito atormentado dialogava com o mal em frente ao espelho, eu sempre o via falando sozinho, com o rosto alterado. Ele parecia sentir tanto ódio. Aquele rosto do espelho é a cara dos meus piores pesadelos, até hoje. Como é meu pai, hoje? Ele passa dos oitenta anos, está doente e fraco, mas dentro dele ainda reside o monstro da porta do meu quarto, o qual, se eu fechar os olhos, pulará sobre mim com violência. Isso é verdade? Claro que não é, são apenas meus delírios, parecem ruins? Na verdade é uma fuga prazerosa, nenhum maluco apela para a loucura porque ela é ruim, se fosse ruim ele não a viveria. Assim ele não tem escolha, já que todas as escolhas que fazemos na vida é em busca de prazer, dê a ele o nome que for, mesmo que seja negação de prazer. O suicídio é o prazer extremo e que se torna a única opção para alguns. Minha loucura é isso o que eu sinto, o que eu quero sentir, é o melhor que posso sentir. Com o tempo a gente entende que a verdade sobre a vida não é a mais lógica, a mais lúcida, a mais racional, a mais real, mas é aquilo que sentimos e que no final das contas é o que residirá para sempre dentro de nós. Pastores, padres, sacerdotes, monges, psiquiatras e amigos, podem tentar nos convencer que nossa mente é nossa única cela, que precisamos nos libertar de nós mesmos, aceitar as coisas e deixar que elas sigam para fora de nós. O sentimento, todavia, é mais forte, restos de tudo aquilo que disseram que somos, que nós dissemos para nós mesmos que somos, a verdade é isso, o que sentimos.
      Estou chegando ao hotel, antigo, decadente, mas bem localizado, gosto dele. Eu me mantenho atualizado, mesmo que esteja caindo aos pedaços, gosto de tecnologia, de internet, só me resguardo ainda desses celulares mais caros. Ainda prefiro viajar pelo mundo virtual no conforto do meu quarto, com a janela aberta para a cidade real, mas na frente de uma tela grande e com um teclado adequado para digitar meus textos. Decadente, mas bem localizado, não me julguem pelo meu falar pesado, pela minha constante falta de paciência com a humanidade, pelas minhas roupas surradas, pelo meu cabelo comprido e pela minha barba por fazer. Conheçam-me pelos meus textos, é o que tenho de mais delicado, neles eu procuro ser elegante com todos, neles o amargo adquire charme, a dor, ganha asas e foge da gaiola, o prazer é muito mais que um orgasmo, a balzaquiana com alguns quilos a mais, é uma princesa que ainda espera o príncipe, mesmo que ele seja eu, uma criança triste nascida em 1959 no estado do Paraná.

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