domingo, 6 de março de 2016

Só mais uma mesa de bar

      Preciso escrever, tenho necessidade de inventar coisas, mundos que eu possa controlar, vou colocar algumas pessoas num bar e ver no que dá. É assim que começa, não se inventa uma história para descobrir personagens, a história não é a dona dos personagens, mas são os personagens que têm uma história. Basta soprar-lhes vida, dar uma oportunidade, deixar que eles falem com as pessoas, caminhem pela cidade, acordem, trabalhem, estudem, amem, durmam, usem a internet, o telefone, ouçam música, vejam filmes, televisão, que tomem um simples café, e tudo acontece...

      Todos estavam lá, dois casais e mais três amigos solteiros, um dos casais já junto há cinco anos, Raul e Laísa, o outro, Carlos e Clarice, há menos de seis meses, os solteiros eram Raquel, Cris e Olavo. Cheiro de bar, de cerveja envelhecida, eles eram sócios do lugar, estavam lá toda semana.
      Cléo, a cantora, fazia uma Elis Regina sincera, mesmo que desafinada nas notas altas, entregue e molhada de emoção, o tecladista, Leopoldo, em piloto automático, esperava terminar a entrada para tomar uma nova dose de uísque. Cléo era jovem, bela, pernas grossas, olhos grandes e brilhantes, cabelos encaracolados, uma atriz que cantava, conhecia Elis, Milton e Djavan pelos velhos vinis de seus pais, não era nascida no tempo em que esses clássicos tocavam no rádio em qualquer estação e não só em especializadas, como hoje. Leopoldo tinha os álbuns originais, comprados por ele mesmo na adolescência, guardava "Atrás da porta", "Travessia" e "Flor de lis" nas paredes de sua memória, pra ele essas canções não eram nostalgia de butique, eram trilha sonora de primeiros momentos que viveu um dia.
      Músicas, a princípio, são só músicas, letras e melodias, com o tempo, contudo, ganham rostos, gostos e cheiros, constroem espaços e tempos dentro de nós, adquirem corpos que nos possuíam antes, ao nascerem do coração do artista. Na "vibe" de uma canção fazemos loucuras, nos entregamos sem medo e sem culpa, alados por uma emoção impressa em nossas almas buscamos o impossível, reviver paixão antiga, ousar algo que nunca fizemos.
      - Raquel? Está distante hoje...
      - Sei lá, Olavo, só mais uma noite de sexta.
      - A primeira do resto de nossas vidas?
      - A última do começo - Raquel riu enquanto levava o copo de cerveja à boca.
      - Bem que podia ser hoje - disse Cristina, amiga louca de Raquel.
      - Hoje, o quê? - perguntou Raquel.
      - A noite em que conheço o homem dos meus sonhos - respondeu Cris com os olhos parados no tecladista.
      - Não vai conversar com ele? - perguntou Raquel.
      - Ah, não tem mais nada pra ser dito, acabou.
      - Ele morreu e não o enterraram - disse Olavo com desdém.
      - É o jeito dele, quieto, teve um tempo que isso me atraía, eu achava misterioso, hoje é só tédio - disse Cristina.
      - Eu sou mais o guitarrista, não sei porque a Cléo não o trouxe mais, o Leopoldo é muito parado, só toca música lenta - disse Olavo.
      - O Leo gosta de música sentimental, além do mais a dupla é Cléo e Leo, combinam mais os nomes - disse Raquel defendendo o tecladista.
      - Gente, estamos indo, depois a gente se fala - Carlos e Clarice saíram de cena, era paixão recente, queriam mais é privacidade, transar em algum lugar qualquer.
      - Vamos dançar? - o casal que ficou foi para a pequena pista de dança, ela sempre queria dançar quando Cléo cantava "Dois pra lá, dois pra cá".
      Um cara entrou no bar e foi para o balcão, sentou-se num banco e pediu algo, Cris o viu e prendeu seu olhar nele, ela o olhava, mas sua cabeça estava longe, fantasiava, estava entediada, não da noite, mas da vida, queria algo que ativasse suas endorfinas, qualquer coisa, qualquer coisa mesmo.
      - Ele é bonito - disse Raquel.
      - Com certeza é casado - respondeu Cris.
      - Não sei - disse Raquel.
      - Acho que é gay - brincou Olavo, ele sabia que o cara não era gay, os gays se reconhecem num primeiro olhar.
      - Basta o cara ser elegante, maduro e sozinho pra você dizer isso - disse Cristina levantando a mão e dando sinal para o garçom trazer mais bebida.
      - Vocês nem ligam mais pra beleza, querem é grana, se o cara for rico, pode ser horroroso - zombou Olavo.
      - Eu gosto de homens bonitos, nem precisam ser bombados, gosto deles naturais - disse Raquel.
      - Do jeito que estou, pode ser até alienígena - pensou alto Cris.
      - Os homens são de Marte, - riu Olavo - você está a perigo, amiga, vai acabar fazendo bobagem.
      - Bobagem, vem em mim que estou facinha - disse Cristina rindo alto, tão alto que o cara lá do balcão olhou pra ela.
      - Ele olhou pra você - disse Raquel.
      - Também, escandalosa... -  disse Olavo.
      - Vou lá - disse Cris levantando-se.
      - Amanhã aguenta a choradeira, amiga borderline não é fácil, se empolga depressa, depois se atormenta com culpa - disse Raquel.
      Cris esgueirou-se como cobra até o balcão, apoio-se com os braços posicionando estrategicamente seu bum-bum, a fêmea iniciava seu ataque. O cara olhou para o corpo de Cristina, ela olhou para ele, sorriu de maneira que ele percebesse que ela sabia o que ele pensava. Daí começaram a falar e o que se iniciava só terminaria na madrugada.
      - E aí Raquel, e você? Não vai atacar ninguém? - perguntou Olavo.
      - Não é meu jogo, não gosto de pegar caras em bar - respondeu Raquel.
      - Acho que também estou assim - disse Olavo.
      - Já fomos casados, eu sei onde tudo vai dar - disse Raquel.
      - Dá tudo na mesma, hétero, bicha, paixão sempre acaba.
      - Ou se transforma em obsessão, o que é pior.
      - Eu que o diga - concordou Olavo tentando engolir um refluxo amargo que voltou do coração.
      - Todos somo carentes e ciumentos, de alguma maneira, mas relação gay parece que é sempre mais possessiva, estou enganada? - perguntou Raquel.
      - É verdade, talvez seja porque são dois homens, homem é sempre homem, não é porque gosta de homem e não de mulher que não é homem.
      - As sapatinhas também são bem inseguras.
      - Nem todas, mas concordo que existe uma passionalidade exagerada nos gays.
      - É?
      - Relacionamento gay é mais delicado, sempre somos aqueles que estão indo contra à maioria, somos essencialmente subversivos, estamos sempre em guerra, ou melhor sempre estão em guerra contra a gente, isso abala qualquer um. Se nos beijamos todo mundo olha, se vamos para um hotel e pedimos um quarto com cama de casal, os recepcionistas fingem demorarem para entender, tentam nos convencer que queremos com duas camas de solteiro. Você também tem que concordar que o mercado é menor, quando a gente acha alguém tenta guardar com unhas e dentes.
      - Mas as coisas estão diferentes hoje em dia, nas escolas os jovens tratam os gays de forma mais natural.
      - As meninas sim, mulher é sempre mais complacente, mas ainda tem muito cara que nos trata com violência, parece que querem compensar alguma insegurança.
      - As meninas estão bem diferentes daquelas do meu tempo, brigam igual aos meninos, às vezes são até mais violentas.
      - Culpa dos pais héteros que as criaram, quero ter filhos, vou criá-los com respeito e respeitando a todos.
      - Também penso assim, dou o que acho ser melhor, mas que cada um faça suas escolhas.
      Cristina passou por eles, de mão dada com o cara, quando estava na porta do bar virou pra trás e deu uma piscada de olho para os amigos.
      - Elegante ele, bem vestido, cabelo arrumado - disse Olavo.
      - Só quero ver a choradeira amanhã - disse Raquel, balançando a cabeça.
      Os músicos deram uma pausa, o casal de amigos voltou à mesa. Leopoldo, do teclado, fez sinal chamando Raquel que foi até ele.
      - Tudo bom? - disse Raquel.
      - Vou indo - disse Leopoldo melancólico, como sempre.
      - Você ainda não tocou minha predileta - disse Raquel.
      - Abro o próximo bloco com ela, também adoro "Beatriz".
      Ele ficou quieto, Raquel deu um gole na bebida, o garçom se aproximou e trouxe a dose costumeira de scoth de Leopoldo.
      - Obrigado - agradeceu Leo.
      - Está mais quieto hoje - disse Raquel.
      - Cristina saiu com um cara...
      - Você conhece a figura...
      - Acho que não, até hoje não entendi o que aconteceu entre nós...
      - Eu sei.
      - Não fiz nada errado, eu a amava pra caramba...
      - A Cris é minha amiga desde a faculdade, gosto muito dela, mas enquanto ela não resolver com ela mesma não vai ser feliz com ninguém.
      - Mulheres são complicadas.
      - Nem todas.
      - Ela está de um jeito e de repente muda, parece que se transforma em outra pessoa.
      - As coisas não são tão simples, ela sofreu muito com os pais...
      - Todo mundo sofre com os pais...
      - Mas ela não digeriu isso até hoje, e não é só isso, ela tem esse problema, os remédios...
      - Borderline, virou moda hoje em dia, bipolares, esquizofrênicos...
      - Algumas pessoas se aproveitam da moda, mas no caso dela é verdade, ela já teve crises bem sérias, borderline é pior que bipolaridade...
      - Eu só queria protegê-la...
      - É difícil proteger alguém de si mesmo...
      - A Cléo está voltando, preciso começar, depois a gente se fala, obrigado Raquel - disse Leo, dando talvez o primeiro sorriso da noite, atrás daqueles pequenos olhos míopes. Leopoldo era um cinquentão baixinho, com pança de cerveja, não era um homem bonito, mas tinha seu charme, era pianista, isso já basta para que um cara seja especial.
      - Se cuida - Raquel era sempre muito carinhosa com ele, aliás, com todos, era a amigona que segurava todas as barras, talvez por causa disso, ter tempo para todos, nunca tinha tempo pra ela mesma. Seu ex-marido saiu da vida dela justamente por isso, era cuidado demais, ela o acostumou mal, esqueceu-se de uma das regras mais importantes de uma relação: não deixe o outro pensar que tem você por inteiro, sempre esconda um pouco do jogo, e se não tiver nada para esconder, minta, invente alguma coisa. Só nos prendemos a alguém sobre o qual não temos controle, é a angústia da impotência que nos desafia a continuar apaixonados, para tentar ter o poder em algum momento.
      Ela voltou à mesa, o casal de amigos estava sentado, Olavo havia se levantado, tinha ido conversar com um amigo no balcão.
      - E vocês dois, quando vão oficializar a união?
      - Está bom assim - disse Laísa.
      - Bem que eu queria ver você de noiva, não ia ficar linda, Raquel? - disse Raul.
      - Com certeza - respondeu Raquel. Raul era divorciado e tinha um filho do primeiro casamento. Agora, que a ex estava namorando, as coisas estavam bem, mas antes vivia brigando com ela. Não adianta, mesmo depois de separada, do ex estar comprometido com alguém, enquanto a mulher não se apaixonar, no fundo, sempre achará que tem algum direito sobre o ex, pode passar o tempo que for. Ele não havia se casado no religioso, da primeira vez, foi só no civil, e isso no final, numa tentativa de melhorar a relação, um ano depois que se casou no civil, entrou com os papeis para o divórcio.
      - Vamos? - disse Laísa - tenho que trabalhar amanhã cedo - eles deixaram dinheiro para a parte deles na conta, se despediram e foram embora, nisso Olavo voltou.
      - Gilberto está com outro - disse ele sobre o ex.
      - No duro? - respondeu Raquel.
      - Melhor, agora desencano de vez.
      - Temos que partir para outra, meu amigo, já velamos defuntos por muito tempo.
      - Você está a fim de ficar mais?
      - Não, estou cansada.
      Eles pediram a conta, pagaram suas partes e a da Cris e foram embora.
 
      Depois que você cria, se apaixona por eles, e aí, torna-se responsável pelos personagens. Eles são inocentes, estavam quietinhos em algum lugar do limbo da consciência coletiva, quando nós os acordamos, demos vida a eles, expusemos suas intimidades, os presenteamos com o privilégio luxuoso da escolha. E agora, para onde eles irão, o que farão, serão felizes? Talvez fossem mais felizes antes, no limbo, quando eram só almas. 
      Brincar de Deus é algo sério, tanto nos tornamos mães, gerando e parindo, esperando e sofrendo, quanto podemos virar assassinos, sádicos, dando fim a sonhos só por um momento de fuga. Brama ou Shiva? Não, apenas humanos, e assim serão os personagens, limitados às nossas humanidades, visto que são sopros de vida nossos. Se amamos, eles amarão, se matamos, eles matarão, se fomos inconsequentes, assim eles serão, se somos covardes, terão medo de sair da rotina, de se aventurar, de deixar de cumprir um compromisso só para ficar só e olhar para o céu. Se estivermos encarcerados naquilo que nos disseram que éramos, nas tradições de nossos pais, sendo apenas cópias de referências próximas, preguiçosos e acomodados, os personagens nem existirão, não haverá em nós força criativa para conceber arte. 
      Por que tantos músicos são limitados, mornos, incapazes de seduzir alguém com sua arte? Mesmo que estudem por horas escalas e acordes, a música não terá capacidade de emocionar, serão antíteses do flautista de Hamelin, afastarão ao invés de atrair, não criarão nem a morte, porque para tirar é preciso antes dar a vida. Isso acontece aos que erguem em volta de si mesmos cercas de nãos, desconhecem o mundo, é o que é conhecer a vida senão saber das pessoas? Cada pessoa com a qual nos confrontamos é um mundo que se abre, alguém nunca é só, é sempre uma legião de seres, muitos desses, nunca se manifestarão, mas todos eles são escolhas, possibilidades de ser e de fazer. São esses seres que ficam aprisionados no limbo e que podemos trazer à vida através da arte, da música, como deste texto que escrevo agora.

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