quarta-feira, 9 de março de 2016

Questão de escolha

      Chovia forte, chovia há dias, parece que não pararia de cair água do céu nunca mais. Ele gostava de andar a pé pela cidade, principalmente à noite. Era quarta-feira, seu restaurante favorito fazia o melhor filé à parmegiana numa cidade onde esse prato era tradicional, todos os restaurantes famosos o faziam, e todos diziam que faziam o melhor. Ele tinha tomado uma taça de vinho tinto da casa, jantado e terminara a refeição com um pedaço de torta de limão e um café expresso, curto, forte e quente, agora estava na rua, voltando para casa. Morava no centro, perto do restaurante, nem havia trazido guarda-chuva, mas uma tempestade surrava a terra, chuva e vento, ele caminhou por algumas quadras e teve que parar, se continuasse ficaria ensopado.
      Encostado na porta roliça de um açougue fechado, deixava-se hipnotizar pela água que descia no asfalto, com certeza já estava inundada a região mais abaixo da cidade. Barulho de chuva foi feito pra gente dormir ouvindo, ele estava cansado, já trabalhava há dez dias seguidos na produção de um álbum de um cantor sertanejo qualquer. Ele pensava em quanto tempo estava perdendo com seu talento, podia estar na capital, tocando jazz em algum bar bacana, mas estava lá, no interior, esquecido na caipirolândia fazendo música para caipiras. Bem, se isso era o que pagava sua independência, fazer o quê, o pior é que aquela música ruim, aquelas harmonias óbvias e pobres, aquelas letras cheias de malícia e duplo sentido, grudavam em sua cabeça. Ele teria que ouvir muito jazz organ para esquecer aquilo, horas de Jimmy Smith seriam necessárias para que o sertanejo universitário saísse de seu cérebro.
      Ele tentou relaxar, pensar numa escala de blues, no motor da leslie roncando enquanto triturava o som maravilhoso do tonewheel. Quando ele estava conseguindo quase se concentrar no tema de "The cat", seus ouvidos chamaram-lhe a atenção para o ruído de um batuque, estava atrás da chuva e vinha de uma casa à sua direita, alguns metros abaixo da rua. Ele trabalhava como profissional de música desde a adolescência, começou o piano erudito ainda criança, já havia tocado de tudo, todos os ritmos, estilos, de todos os tempos e nacionalidades, mas aquele batuque primitivo, sem harmonia, acompanhando palavras de ordem em nagô, não lhe fazia bem, apertava seu peito, lembrava-lhe a pior parte da pior parte de sua infância.
      André tinha muitos amigos que frequentavam terreiros, muitos dos percussionistas com os quais trabalhava tinham começado a tocar seus instrumentos nas religiões de origem africana. Ele não era um cara preconceituoso, de forma alguma, mas aquela música em especial causava-lhe uma sensação estranha, de morte, como se estivesse caindo num abismo, num sonho, querendo acordar, mas não conseguindo, assim continuava caindo e caindo, num buraco negro sem fim. Contudo, naquela noite, ele sentiu um desejo esquisito, queria se aproximar do som, do lugar de onde vinha o batuque, parece que alguma coisa o chamava.
      A chuva diminuiu, para ele continuar seu caminho só precisava seguir reto, atravessar a rua, mas ele desceu, seguindo a água da chuva, em direção ao som dos atabaques. Era uma residência toda pintada de verde, ele então atravessou a rua e se escondeu, do outro lado, bem em frente, atrás de uma árvore. O poste com a lâmpada queimada ofereceu-lhe o esconderijo que precisava, encostou-se no muro da casa, que parecia abandonada. Olhou a casa verde, estava toda fechada, janelas e porta, o batuque não parava, parecia entorpecê-lo, mais que a chuva que agora pingava de leve. Ele notou que as casas dos lados da casa verde, ambas, também estavam abandonadas. Parecia que alguém o havia amarrado naquele lugar, seus pés pesavam, fazia frio, ele levantou o colarinho do casaco e ficou de campana.
      Não demorou muito para que a porta se abrisse e as pessoas começassem a sair, eram casais, na maioria, mas também havia mulheres, sozinhas ou com outras mulheres, ninguém se falava, andavam depressa, até que pareceu que todos haviam saído. A rua ficou vazia, muito vazia, o mundo pareceu vazio, ele se sentiu muito só, como nunca antes havia se sentido, então, uma mulher apareceu na porta. Não, não era negra, baixa e gorda vestida de branco, não tinha nenhum estereótipo de mãe de santo baiana, era uma senhora, magra, estatura mediana, muito branca, de cabelos arrumados e finamente vestida. Ela ficou lá, parada na porta, e por alguns instantes olhou para frente, na direção dele, mas para o alto, para o céu, então, ela acendeu um cigarro e começou a fumar, com muita calma.
      Ele não conseguia se mover, atrás da árvore, pensava, "ela não deve ter me visto, vou ficar aqui quieto, quando ela entrar, vou embora", André não conseguia nem respirar. Ela tragava o cigarro lentamente, soltava a fumaça e tornava a tragar, fez isso algumas vezes, então, jogou o cigarro ao chão, pisou nele e começou a andar. Passo a passo ela atravessou a rua e veio na direção de André, ele pensou, "ela está vindo pra cá, o que é que eu faço?". Mas ele não podia se mover, parecia parte da calçada, cimentado no chão. Ela chegou até ele e parou, de alguma maneira o luar, entre as nuvens pesadas da tempestade que voltaria a qualquer momento, achou uma brecha e iluminou rosto da mulher, então ele pode vê-la com mais nitidez. Ela cheirava perfume caro, tinha os olhos azuis, esses fitaram os olhos de André, e antes que ela abrisse a boca para dizer algo, ele sentiu como que se já soubesse o que ela iria falar.
      - Está com medo? - disse ela.
      - Não - gaguejou ele.
      - Não precisa mentir, estou sentindo seu medo desde que vim pra fora. Como você se chama?
      - André, e a senhora?
      - A senhora? - ela não respondeu, mas abriu o rosto num sorriso distante.
      - Já está tarde, preciso ir - tentou se livrar André.
      - Você esperou até agora, agora quer fugir?
      - Esperei?
      - Você quer respostas?
      - Tem perguntas que nunca terão respostas.
      - Me faça uma.
      - O que é que eu faço nesta cidade?
      - O que você veio procurar aqui?
      - Vim atrás de uma mulher, não deu certo, já estava trabalhando aqui e acabei ficando.
      - Você a quer de volta?
      - Não sei, acho que não mais.
      - As pessoas podem ser convencidas.
      - Como assim?
      - Ela pode ser convencida a voltar pra você.
      - Convencida por quem? Pela senhora?
      - Por mim? - debochou ela dele.
      - Desculpe-me, mas a senhora ainda não me disse seu nome.
      - Tenho vários nomes - ele pensou, "ela deve ser de família tradicional, com um monte de sobrenomes", mas não foi isso que ela quis dizer.
      - A senhora é nascida aqui na cidade?
      - Estou nesta terra há muito tempo - ela parecia, pelos cabelos, ter mais de sessenta, mas sua pele, alva como a lua, parecia pele de bebê.
      - Entendo - na verdade ele não estava entendendo muita coisa, mas achava que entendia pelo menos um pouco.
      - Quer a amada de volta ou não?
      - Às vezes penso nela...
      - Você pensa sempre nela, André - ela falava como se o conhecesse a fundo e há muito tempo.
      - Ok, admito, penso bastante nela, mas talvez seja porque ainda não achei alguém para colocar no lugar dela, agora é tarde, está noiva, vai se casar.
      - Ela pode ser convencida.
      - Já vem a senhora com essa conversa de novo.
      - Está duvidando de mim, meu jovem?
      - Não - é claro que estava, mas ficou apavorado, teve medo de contradizê-la.
      - Podemos fazer um negócio, é simples, você me dá algo e eu dou a você algo em troca.
      - Estou numa dureza só - "lá vem mais uma pessoa querendo meu dinheiro", pensou ele, já basta o sindicato de músicos que pedem muito e não dão nada em troca.
      - Não preciso do seu dinheiro.
      - O que você quer?
      - Que você se lembre de mim, que agradeça a mim por tudo que você tem, que invoque meu nome e peça para que eu esteja sempre com você.
      - Isso parece papo de crente, você está falando em nome de quem? De Deus?
      - Deus? - ela deu uma enorme gargalhada, pareceu que o mundo inteiro ouviu. André ouviu o eco repercutir na noite, mas continuava olhando para ela, não podia deixar de fazer isso, nem piscava.
      - Não é? Em nome de quem então, aliás, qual é o nome da senhora?
      - Meu nome? Você ainda não sabe quem eu sou?
      - Não.
      Naquele momento, ele percebeu, estava ouvindo ela falar, desde o início, mas na verdade ela não tinha aberto a boca, ele ouvia tudo em sua cabeça. Os olhos dela brilhavam muito, eles o prendiam, então, ele fez um esforço, talvez o maior esforço que já tinha feito até então, como aquele que se faz quando se quer acordar de um pesadelo, mas se sente preso à cama. Ele reuniu todas as forças que tinha, em sua mente, em seu coração, ele queria sair dali, ir embora, ele sentia que se continuasse naquele lugar, se desse ouvidos àquelas palavras, sua vida mudaria de maneira que nunca mais seria a mesma. Ele sentia que tinha nas mãos uma escolha, e nesse momento ele ouviu com clareza uma voz, alguém maior que ele, que a mulher, alguém que estava acima deles, das nuvens escuras, da Terra, da Lua, esse alguém lhe dizia, "se der ouvido à proposta feita, uma volta custará muito caro a você, você precisa sair daí, correndo".
      Tudo isso passava por sua cabeça enquanto os olhos grandes e azuis daquela senhora estavam fixos nos seus olhos. Com uma força de vontade que ele achou que não tinha, fechou os olhos, abaixou a cabeça, respirou fundo e num instante, que pareceu durar horas, algo muito louco aconteceu. Ao som do batuque dos instrumentos, que tocavam ainda mais alto, como em um filme com velocidade alterada, onde tudo se passa rapidamente e para trás, a mulher voltou ao portão, o cigarro retornou à sua mão, a fumaça solta no ar voltou à boca da velha, uma, duas, três, várias vezes. Então, ela entrou na casa, as pessoas voltaram à casa, os casais, as mulheres, depressa, ao som alto dos atabaques que tocavam freneticamente cada vez mais rápido, até que a porta se fechou. Subitamente ele abriu os olhos, o mundo parecia ter voltado ao normal de novo.
      André estava na soleira do açougue, algumas casas antes da casa verde, a chuva caía fortemente, e ele saiu do transe, o batuque ainda soava, mas lá no fundo, bem baixo. Ele chacoalhou a cabeça, despertou e atravessou a rua, em direção à sua casa. André chegou em casa poucos minutos depois, tinha uma certeza em seu coração, iria embora daquela cidade, não ficaria mais preso a um desejo que não poderia se realizar, a uma mulher que já não o queria. Ele iria atrás de seus sonhos, tocar a música que mais gostava, mesmo que tivesse que ganhar menos, mas ele viraria a página que encerrava um capítulo de sua vida.
      Na manhã seguinte, depois de tomar o café na padaria, ele parou numa banca de jornais, ainda chuviscava e ventava. Enquanto olhava o preço de umas revistas importadas sobre tecnologia e áudio, o vento bateu num jornal que estava na prateleira de baixo que se abriu, ele então viu, no meio da página, uma publicidade: "O centro espírita Maria Letícia convida você para seus trabalhos, reuniões às sextas-feiras, às vinte e duas horas", embaixo do convite havia um desenho, André reconheceu, era a senhora que ele havia encontrado na noite passada.
      - Amigo, quem é essa mulher na figura? - perguntou André ao jornaleiro.
      - Maria Letícia, famosa aqui na cidade.
      - Acho que falei com ela ontem à noite...
      - Falou com ela? Bem, dizem que o espírito dela baixa nesse centro, mas o lugar só abre às sextas.
      - Mas pra baixar, a pessoa não tem que estar morta?
      - Sim, Maria Letícia morreu nos anos sessenta, era fazendeira rica, dizem que foi assassinada pelo capataz de uma de suas fazendas, que depois se matou, parece que ele gostava dela, mas ela não queria nada com ele. Outra versão diz que a mulher dele, num ataque de ciúmes, matou os dois.
      - Como assim, ela morreu?
      - Morreu...
      - Mas eu falei com ela ontem...
      - Você viu foi um fantasma - riu o jornaleiro.
      - Ela disse que queria fazer uma troca comigo...
      - Boa coisa não era, devia querer sua alma...
      André teve a oportunidade de fazer uma escolha, não, era bem mais que arrumar uma religião, que passar a seguir uma visão de espiritualidade. A escolha era continuar preso a algo que o levaria a nada, celebrando uma coisa que deu errado, ou se aventurar no novo, no desconhecido. Inseguro? Mas muito melhor do que aquilo que ele tinha até então. André fez a escolha correta, agora estava mais certo que nunca, iria embora daquela cidade, iria recomeçar em outro lugar, iria atrás do tempo, algo que só os corajosos provam porque deixam para trás o medo, o passado, quando dão o primeiro passo rumo ao futuro.

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